Tratado escrito na metade do século XIX Pelo 1o Bispo da Diocese Anglicana de Liverpool Por Jonh Charles Ryle, Quando era reitor em Helmingham, Suffolk.
Você provavelmente sabe que o Calvário foi um lugar próximo a Jerusalém, onde o Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, foi crucificado. Fora isso, não sabemos mais nada sobre o Calvário. Eu chamo esse tratado de “Calvário”, porque lhe falarei sobre o sofrimento e a crucificação de Cristo.
Eu tenho medo que tamanha ignorância prevaleça sobre as pessoas no tocante ao sofrimento de Jesus Cristo. Suspeito que muitos não vêem nenhuma glória peculiar nem beleza na história da crucificação, pelo contrário: eles acham doloroso, humilhante e degradante. Eles não vêem grande ganho na história da morte de Cristo e de seus sofrimentos: eles preferem olhar para isso como algo desprazeroso.
Acredito que essas pessoas estão um tanto quanto erradas. Não posso concordar com elas. Acredito que seja excelente para todos nós discorrermos continuamente sobre a crucificação de Cristo. É bom sermos sempre lembrados de como Jesus foi abandonado nas mãos de homens maus, como eles o condenaram com o mais injusto julgamento, como cuspiram nEle, açoitaram-no, espancaram-no, e coroaram-no com espinhos, como eles O levaram adiante como um cordeiro para o abatedouro, sem murmúrio ou resistência, como pressionaram os pregos contra Suas mãos e Seus pés, e o deixaram no Calvário entre dois ladrões, como o perfuraram com uma lança, zombaram dEle e de Seu sofrimento, e O deixaram pendurado ali, nu e sangrando até morrer. De todas essas coisas, eu digo, é ótimo relembrar. Não foi por nada que a crucificação foi descrita quatro vezes no Novo Testamento.
Existem pouquíssimos assuntos os quais todos os quatro escritores do Evangelho descreveram: de modo geral, se Mateus, Marcos e Lucas contam algo sobre a história do Senhor, João não conta; mas existe uma coisa que todos quatro nos dão inteiramente, e é a história da cruz. Este é um fato narrado, não omitido.
As pessoas parecem esquecer que todo o sofrimento de Cristo no Calvário foi predeterminado. Esses homens não vieram a Ele por acaso, por acidente: eles foram todos planejados, aconselhados, e determinados por toda a eternidade; a cruz foi prevista em todas as provisões da eternal Trindade para a salvação dos pecadores. Nos propósitos de Deus, a cruz foi estabelecida desde o inicio.
Não houve uma palpitação de dor, nem uma preciosa gota de sangue vertida por Jesus, que não tenha sido preestabelecida há muito tempo. A infinita sabedoria estabeleceu que a libertação deveria ocorrer pela cruz, a infinita sabedoria trouxe Jesus à cruz no tempo devido. Ele foi crucificado pelo plano e pela previsão de Deus.
Pessoas parecem esquecer que todo o sofrimento de Cristo no Calvário foi necessário para a salvação humana. Ele precisava carregar nossos pecados, se é que alguma vez eles deveriam ter sido carregados: apenas com suas chicotadas nós poderíamos ser curados.
Esse foi o único pagamento por nossos débitos que Deus aceitaria; esse foi o maravilhoso sacrifício em que dependia nossa vida eterna. Se Cristo não tivesse ido à cruz e sofrido no nosso lugar – o justo pelo injusto – não haveria uma faísca de esperança para nós; haveria uma imensa baía entre nós e Deus, onde nenhum homem jamais passaria.
A cruz foi necessária, a fim de que o Seu poder fosse a redenção para o pecado.
Pessoas parecem esquecer de que o sofrimento de Cristo foi suportado voluntariamente e por sua própria vontade. Ele não estava sobre coerção:
por escolha própria, Ele sacrificou Sua vida; por escolha própria, Ele foi ao Calvário terminar o trabalho que veio fazer. Ele poderia facilmente ter intimado uma legião de anjos com uma palavra, e dispersar Pilatos, Herodes e todo o seu exército, como palha diante do vento; mas Ele estava disposto a sofrer: seu coração estava firme na salvação dos pecadores. Ele estava resoluto a abrir uma fonte purificadora para todo o pecado e impureza, derramando seu próprio sangue.
Leitor, quando penso nisso tudo, não vejo nada doloroso ou desagradável na crucificação de Cristo; pelo contrário, vejo nela sabedoria e poder, paz e esperança, alegria e contentamento, conforto e consolação. Quanto mais mantenho a cruz na minha mente, maior a plenitude que percebo nela; quanto mais discorro sobre a crucificação nos meus pensamentos, mais fico satisfeito por ver que há mais para se aprender no Calvário do que em qualquer outro lugar do mundo.
Saberia eu o grau e a grandeza do amor de Deus Pai para com um mundo pecador? Onde poderia observar isso de forma mais clara? Deveria olhar para o Seu glorioso sol, brilhando diariamente para o ingrato e malvado?
Deveria eu olhar para a semente e sua colheita, retornando regularmente numa sequência anual? Oh, não! Não consigo encontrar maior prova de amor do que essa! Eu olho para a cruz de Cristo: e vejo nela não a causa do amor do Pai, mas sua consequência.
Ali eu vejo que Deus tanto amou esse mundo pecaminoso, que deu o Seu único, primogênito, Filho – deu-o para sofrer e morrer – para que qualquer pessoa que nEle cresse, não perecesse, mas tivesse a vida eterna. Eu sei que o Pai nos ama, porque por nós, Ele não negou se Filho, seu único Filho. Ah, leitor, algumas vezes imagino que Deus o Pai é muito grande e santo para se importar com criaturas tão miseráveis e corruptas como nós: mas não posso, não devo me atrever a pensar isso quando olho para o sofrimento de Cristo no Calvário. Saberia eu o quanto o pecado é depravado e abominável na visão de Deus?
Onde posso ver isso de forma mais evidente? Deveria eu voltar à história do dilúvio e ler como o pecado afogou o mundo? Deveria eu ir à praia do Mar Morto e descobrir qual pecado provocou Sodoma e Gomorra? Deveria eu voltar aos judeus sem rumo, e ver como o pecado os espalhou pela face da terra? Não: posso encontrar uma prova ainda mais clara: eu olho para o que aconteceu no Calvário.
Lá eu vejo que o pecado é tão obscuro e condenável que nada, a não ser o sangue do Filho de Deus, poderia lavá-lo; lá eu vejo que o pecado me separou tanto do meu santo Criador, que nem mesmo os anjos no céu poderiam fazer a paz entre nós: nada poderia nos reconciliar, apenas a morte de Cristo. Ah, se eu escutasse a conversa miserável do homem orgulhoso, poderia imaginar, talvez, que o pecado não fosse tão pecaminoso; mas não posso pensar tão pouco sobre ele, quando olho para o Calvário.
Saberia eu a plenitude e a perfeição da salvação que Deus providenciou aos pecadores? Onde posso vê-la mais distintamente? Devo eu ir às declarações gerais na Bíblia sobre a misericórdia de Deus? Devo descansar na usual verdade de que Deus é um Deus de amor? Oh, não! Eu olharei para a crucificação no Calvário.
Não encontro outra evidência como essa: não encontro conforto para uma consciência aflita e um coração atribulado como a visão de Jesus morrendo por mim na cruz maldita. Lá eu vejo que um pagamento completo foi feito por todos os meus pecados horríveis. A maldição daquela lei que quebrei, derramou-se sobre Um, que lá sofreu no meu lugar; a exigência daquela lei já foi satisfeita: o pagamento foi feito por mim até o último centavo. Ele não será exigido uma segunda vez. Ah, eu devo algumas vezes imaginar que era muito malvado para ser perdoado; meu próprio coração às vezes sussurra que sou muito ruim para ser salvo.
Mas eu sei que isso é tudo minha incredulidade boba. Li uma resposta às minhas dúvidas no sangue derramado no Calvário. Eu tenho certeza de que há um caminho para o céu mesmo para o mais vilão dos homens, quando olho para a cruz. Encontraria razões fortes para ser um homem santo? Onde deveria eu voltar-me para elas? Deveria escutar os dez mandamentos apenas? Deveria estudar os exemplos dados na Bíblia sobre o que a graça é capaz de fazer?
Deveria meditar nas recompensas do céu, no castigo do inferno? Não há algum motivo mais forte? Sim: eu olharei para o Calvário e a crucificação.
Lá eu vejo o amor de Cristo compelindo-me a viver não em mim, mas nEle; lá eu vejo que não sou mais meu, eu fui comprado com um preço: sou compelido pelo mais sagrado compromisso a glorificar a Jesus com meu corpo e espírito, que são dEle. Lá eu vejo que Jesus deu a si mesmo por mim, não apenas para redimir-me das iniqüidades, mas também para me purificar, e fazer-me uma pessoa singular, zelosa das boas obras.
Ele perfurou meus pecados no seu próprio corpo na cruz, para que eu morresse para o pecado e vivesse na retidão. Ah, leitor, não há nada tão purificador quanto uma visão clara da cruz de Cristo! Ela crucifica o mundo em nós, e nós no mundo. Como podemos amar o pecado quando nos lembramos que foi por causa dele que Jesus morreu? Certamente ninguém é tão santo quanto os discípulos de um Senhor crucificado. Aprenderia eu a ser satisfeito e alegre mesmo sob todas as preocupações e ânsias da vida? A qual escola devo ir? Como posso atingir esse estado de espírito mais facilmente? Devo olhar para a soberania de Deus, Sua sabedoria, providência e amor? É bom fazer isso, mas tenho um argumento ainda melhor. Eu olharei para o Calvário e a crucificação. Eu vejo que Ele, que não poupou seu único e primogênito Filho, mas entregou-o para morrer por mim, irá certamente com Ele dar-me todas as coisas as quais realmente preciso.
Ele, que sofreu aquela dor por minha alma, não irá, certamente, reter de mim nada que for verdadeiramente bom. Ele, que fez coisas grandiosas por mim, fará certamente coisas menores também. Ele, que deu seu próprio sangue para ter-me em casa irá, inquestionavelmente, suprir-me com tudo o que é realmente útil para mim. Ah, leitor, não há escola para aprender contentamento que possa ser compara ao Calvário e o pé da cruz.
Juntaria eu argumentos na esperança de nunca ser lançado fora? Onde devo procurá-los? Devo olhar na minha própria graça e dádiva? Devo me confortar na minha própria fé e amor, penitência, zelo e oração? Devo virar-me ao meu próprio coração e dizer “Esse mesmo coração não será jamais falso e frio”? Oh, não! Deus impeça! Eu olharei para o Calvário e a crucificação. Esse é o meu maior argumento, esse é o meu suporte.
Não posso pensar que Ele, que passou por tantos sofrimentos para redimir minha alma, deixará essa mesma alma perecer apesar de tudo, depois que ela já foi modelada por Ele. Oh, não! Pelo que Jesus pagou, Ele certamente manterá. Ele pagou caro por isso e não deixará que se perca facilmente. Ele morreu por mim quando eu era ainda um grande pecador, Ele nunca desistirá de mim depois que acreditei. Ah, leitor, quando Satã lhe tenta a duvidar se os escolhidos de Cristo serão protegidos de cair, você devia dizer-lhe que você, ao olhar para a cruz, não pode se desesperar.
E agora, leitor, você se admirará quando disser que todos os cristãos devem dar mais importância à crucificação? Você não irá agora se admirar que alguém possa escutar sobre o sofrimento de Cristo no Calvário e permanecer imóvel? Eu afirmo não conhecer maior prova da depravação humana do que as centenas dos auto-intitulados cristãos que não vêem nada de gracioso na cruz.
Nossos corações podem muito bem serem chamados duros, os olhos de nossa mente, cegos, nossa natureza por completo, doença, nós podemos todos sermos chamados mortos, quando a cruz de Cristo é escutada e, mesmo assim, negligenciada. Certamente podemos pegar as palavras do profeta e dizer “Escute, oh, céus, e fiquem pasmos, oh, terra: algo maravilhoso e terrível foi feito”: Cristo foi crucificado pelos pecadores e, mesmo assim, muitos cristãos vivem como se Ele nunca tivesse sido crucificado! Leitor, se você nunca pensou muito sobre o Calvário e a crucificação antes, acredito que você terá aprendido algo hoje.
Jonh Charles Ryle
John Charles Ryle, Nascimento: 10 de maio de 1816, Falecimento: 10 de junho de 1900, comumente referido com J.C.Ryle foi clérigo inglês, e o primeiro bispo da diocese da Igreja da Inglaterra em Liverpool. Ryle era filho de John Ryle, um rico comerciante e banqueiro em Macclesfield; John Charles Ryle foi o primeiro filho homem depois de duas irmãs, por isso era considerado naturalmente sucessor de seu pai. Por conta disso, foi educado em Eton e em Christ Church, em Oxford. J.C.Ryle nasceu em Macclesfield, uma pequena cidade britânica no condado de Cheshire, na Inglaterra. Macclesfield é conhecida por ser um lugar onde nasceram ou moraram pessoas ilustres do círculo da música.