RESUMO:
O gigante da Velha Princeton, Benjamin Breckinridge Warfield, condenou explicitamente o racismo e a rígida segregação da sociedade americana de sua época. Seus pontos de vista estiveram notavelmente à frente de seu tempo em relação à compreensão do mal do racismo e até um pouco profético em relação ao mal adicional que resultaria dele. Suas convicções foram explicitamente fundamentadas em uma compreensão e aplicação fiel da unidade da raça humana em Adão e da unidade e igualdade dos crentes em Cristo. Este breve estudo analisa os argumentos de Warfield dentro do contexto de seus dias.
“Nós reverteríamos hoje a declaração inspirada de que em Cristo Jesus não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre?” (B. B. Warfield, 1887)
Benjamin Breckinridge Warfield (1851–1921) da Velha Princeton ganhou reputação internacional como o vigoroso defensor da histórica fé cristã – particularmente em sua expressão reformada – e foi nas categorias tradicionais de estudos bíblicos e teológicos que as suas energias editoriais foram quase que exclusivamente gastas. Causas sociais surgem muito raramente em suas obras, mas uma causa social se destaca como uma que mantém seu interesse particular: a causa dos negros americanos. Sua produção literária aqui não foi extensa, com certeza, mas foi apontada, revelando um profundo senso de urgência sobre o assunto. E embora Warfield raramente se envolvesse em qualquer esforço organizado fora do seminário, essa era a exceção – mesmo que a posição que ele assumiu tenha sido impopular (para dizer o mínimo!), tanto na sociedade quanto na igreja, e mesmo em seu próprio Seminário de Princeton. Para Warfield, a sociedade de “castas perversas” que os Estados Unidos então constituíam era um mal moral e teológico que, se não fosse revertido, traria apenas mais danos à nossa nação.
O fundamento teológico da oposição de Warfield ao racismo era duplo: 1) a unidade da raça humana criada em Adão à imagem de Deus, e 2) as implicações unificadoras do evangelho de Cristo. Em 1911, Warfield argumentou em “Sobre a Antiguidade e a Unidade da Raça Humana”,[1] que a idade da humanidade não é uma questão bíblica. A Bíblia não fala sobre o assunto, argumentou ele, e, portanto, não é uma questão de interesse teológico. Podemos nos interessar pela idade da humanidade por razões científicas, mas não por motivos bíblicos. No entanto, a unidade da raça humana, pelo contrário, é de fato uma questão teológica muito importante.
A unidade da humanidade era, de fato, comumente reconhecida por todos os lados nos dias de Warfield. A evolução havia removido o motivo para se negar uma origem comum à humanidade e “tornou natural considerar as diferenças que existem entre os vários tipos de homens como diferenciações de uma ação comum.”[2] Ele observa que no passado havia várias teorias opostas, tais como o co-adamismo e o pré-adamismo. Também nota que alguns dos primeiros evolucionistas sugeriram múltiplos tempos e lugares da origem humana. O orgulho racial continuou a existir, com certeza, mas teoricamente todos os lados reconheceram uma unidade para toda a humanidade que é evidente tanto física como psicologicamente (fala, tradições comuns, etc.). Vários fatores foram empregados na explicação dessa unidade, mas o fato de haver uma humanidade comum já não exigia defesa.
A importância da unidade da humanidade, para Warfield, dificilmente poderia ser supervalorizada, tanto bíblica quanto teologicamente. A ideia é construída na própria estrutura do relato de Gênesis sobre a origem do homem: Deus criou um único casal a partir do qual descendeu toda a raça (Gn 1:26). Eva foi assim chamada “por ser a mãe de todos os seres humanos” (Gn 3:20). O próprio Adão é assim chamado (“homem”) por ser o primeiro dessa espécie; Warfield observa e nos aponta isso de acordo com as expressões bíblicas “filhos de Adão” ou “homem” como reflexo dessa espécie. Além disso, no dilúvio, toda a humanidade, exceto oito, foi destruída, e a humanidade recomeça, via Sem, Cam e Jafé, com Noé como pai comum, e dos filhos de Noé “foram disseminadas todas as nações na terra” (Gn 10:32) As diferenciações dos povos, nos lembra Warfield, são o resultado da rebelião e da dispersão que segue a torre de Babel (Gn 11). “O que Deus ajuntou os próprios homens separaram.” Ao longo das Escrituras, toda a humanidade é tratada como uma unidade, compartilhando “não apenas uma natureza comum, mas uma pecaminosidade comum, não apenas uma necessidade comum, mas uma redenção comum.”[3] Toda a estrutura do ensino bíblico a respeito do pecado e da salvação, Warfield insiste, é construída com base na nossa unidade comum em Adão. A Israel foi dado o privilégio, certamente, mas isso não se deu por causa deles mesmos; o privilégio deles era apenas por causa da misericórdia divina. E nas provisões da lei aos escravos, Israel foi lembrado de sua humanidade comum. Na verdade, o status privilegiado de Israel foi concebido de tal maneira que, através deles, a misericórdia se estenderia a toda a humanidade.
Warfield rapidamente examina a evidência bíblica, mas de forma abrangente. Ele observa, sobretudo, que Jesus afirmou a origem da humanidade em um único casal (Mt 19:4). E ele cita o pronunciamento claro do apóstolo Paulo sobre o assunto em Atos 17:26. A unidade da humanidade é tão óbvia nas Escrituras que dificilmente requer defesa: “todo o Novo Testamento é compreendido com a irmandade do homem sendo única na origem, na natureza, na necessidade e na provisão de redenção.”[4]
A realidade do pecado racial é basilar para todo o sistema paulino (Rm 5:12; 1Co 15:21), e sob essa realidade, existe a realidade da unidade racial. Isso só existe porque todos os homens estavam em Adão, sendo ele o primeiro cabeça de quem todos os homens compartilham o pecado e sua punição. E somente por que o pecado do homem é de origem e, portanto, de mesma natureza e qualidade, é que a redenção, que é adequada e pode ser disponibilizada para um homem, é igualmente adequada e pode ser disponibilizada para todos. Por ser a raça uma só, bem como a sua necessidade, sendo judeus e gentios iguais sob o pecado, é que não há diferença entre judeus e gentios também em matéria de salvação, mas como o mesmo Deus é Senhor de todos, então Ele é favorável em Cristo Jesus a todos os que o invocam, e justifica a incircuncisão somente pela fé, assim como Ele justifica a circuncisão somente pela fé (Rm 9:22-24, 28; 10:12). Jesus Cristo, portanto, como o último Adão, é o Salvador não somente dos judeus, mas do mundo (João 4:42; 1Tm 4:10; 1João 4:14), tendo sido entregue à Sua grande obra somente pelo amor do Pai pelo mundo (João 3:16). A unidade da raça humana é, portanto, estabelecida na Escritura não apenas como base de uma exigência de que devemos reconhecer a dignidade da humanidade em todos os seus representantes, por menores que sejam os bens ou a família, pois todos carregam a mesma imagem de Deus em semelhança da qual o homem foi criado, sendo esta mais profunda do que o pecado, não podendo ser vencida por ele (Gn 5:3; 9:6; 1Co 11:7; Hb 2:5); mas também como base de todo o plano de restauração concebido pelo amor divino para salvação de uma raça perdida.[5]
A unidade da raça humana em Adão não é apenas biblicamente evidente, insistiu Warfield – é de importância central para a teologia cristã e para o próprio cristianismo. Além disso, o reconhecimento de nossa humanidade comum é acompanhado de uma obrigação ética correspondente. Warfield escreve:
A unidade da raça humana é, portanto, estabelecida na Escritura não apenas como base de uma exigência de que devemos reconhecer a dignidade da humanidade em todos os seus representantes, por menores que sejam os bens ou a família, pois todos carregam a mesma imagem de Deus em semelhança da qual o homem foi criado, sendo esta mais profunda do que o pecado, não podendo ser vencida por ele (Gn 5:3; 9:6; 1Co 11:7; Hb 2:5); mas também como base de todo o plano de restauração concebido pelo amor divino para salvação de uma raça perdida.[6]
Isso quer dizer que nossa compreensão da unidade essencial da humanidade em Adão carrega um significado moral; não é uma questão de interesse teológico meramente abstrato. Warfield tampouco deixou essa questão para uma mera discussão teológica e, em sua condenação do orgulho racial, esteve gerações à frente de seu tempo.
Os pais de Warfield vieram ambos de famílias de abolicionistas declarados e com importantes conexões com a causa da emancipação. Em uma carta ele até parece se gabar disso: John Clarke Young, o desenhista das resoluções do Sínodo de Kentucky de 1835, era o marido da prima da minha mãe. Meu avô R. J. Breckinridge concorreu a uma legislatura por uma chapa pró-emancipação em 1849 – com risco de vida. Cassius M. Clay era o marido da prima do meu pai. Minha sogra era uma abolicionista do tipo William Lloyd Garrison. Meus avós, meus pais e os pais de minha esposa procuraram de todas as formas cumprir seus deveres para com aqueles a quem se sentiam haver pecado por manter em cativeiro.[7]
Ironicamente, a família de Warfield e as famílias dos seus avós todos possuíam escravos – mesmo que, aparentemente, com a consciência pesada. Contudo (correta ou erroneamente), eles consideravam os escravos insuficientemente preparados para a vida lá fora, e os escravos foram visivelmente bem tratados, respeitosa e generosamente pela vontade da família.[8]
No entanto, a sociedade pós-guerra civil – mesmo pós-reconstrução – ainda estava profundamente segregada, mesmo que os escravos tivessem sido libertados. O antagonismo racial não desapareceu e, nessa sociedade decididamente segregada, os negros tiveram pouco espaço para o progresso pessoal ou social. O sofrimento dos libertos e de seus filhos, como Warfield o apresenta – como “praticamente subordinados e não cidadãos, camponeses em vez de libertos”[9], mesmo que sete milhões das cinquenta milhões de almas nos EUA [10], é preocupante e reveladora. A “casta perversa” não estava exagerando, insistiu Warfield, e quando ele assumiu essa causa, deve ter parecido uma voz praticamente única.
Em 1885, Warfield tornou-se membro do Conselho Presbiteriano de Missões para Libertos e trabalhou por sua melhoria. Como mencionado acima, Warfield não foi dado ao ativismo social, e não estava disposto a servir em comitês. Todavia, essa foi a exceção, e sua paixão pela causa é notória.
Em 1887 e 1888 ele publicou artigos condenando a situação e pedindo aos cristãos que considerassem mais seriamente a doutrina que professavam crer. No artigo “Uma Calma Perspectiva do Condição do Liberto” (1887), ele argumentou que a “elevação e civilização” dos negros era “a maior obra ante o povo americano hoje”, e que “o terrível legado do mal que gerações de escravidão deixaram aos nossos libertos é pouco apreciado por qualquer um de nós.”[11] Ele reconhece que remediar o problema é mais fácil falar do que fazer, mas ele contesta aqueles que acham que fizeram tudo o que podiam, e ele prevê apenas um futuro muito difícil para os libertos. O potencial individual entre os libertos era, sem dúvida, perceptível a todos, mas com tantos obstáculos a perspectiva parecia desanimadora.
Quanto à escravidão em si, Warfield a caracteriza como “o mais poderoso dos desmoralizadores”, tendo vetado ao escravo uma vontade própria. É uma “maldição” que “come até as raízes de toda a vida”, um “sistema falso e pervertido”[12] que tem apenas um efeito desmoralizador sobre aqueles que um dia foram cativos. Em 1887 (ano do artigo de Warfield), a sociedade na qual os filhos dos escravos libertos foram criados, agora sem as restrições artificiais impostas pela escravidão, teve um efeito ainda mais desmoralizante e até mesmo imoralizante.[13] A observação de Moorhead é útil: “Como a maioria dos brancos, Warfield presumiu que os afro-americanos haviam experimentado uma decadência moral desde a emancipação. No entanto, ao contrário de muitos outros, ele não atribuiu esse fato a algum defeito moral nos próprio afro-americanos.”[14] A sociedade branca era em grande parte culpada, e Warfield argumenta:
Que pressão podemos aplicar a essas almas errantes para atraí-las para as influências formativas de uma verdadeira e sólida moralidade? O motivo mais forte com a maioria dos homens é a esperança de ascensão. O imigrante mais degradado que chega às nossas margens está sob esse feitiço: a atração da esperança dança sempre diante de seus olhos. Ainda assim, acima dele podem estar outros, ele porém tem que erguer os olhos para ver que o caminho plano corre de seus pés para os dos outros, e que é apenas uma questão de saber se ele está disposto a subir esse caminho – se ele vai ou não estar ao lado dos outros amanhã. Se ele não tem ambição para si mesmo, ele tem para seus filhos; e é raro, na verdade, que as influências civilizadoras dessa única esperança não sejam a excitação suficiente para se esforçar, respeitar a si mesmo e crescer. Mas isso se perdeu para o africano. A classe a qual ele pertence por nascimento é a classe com a qual ele deve fazer sua casa até que a morte o liberte. Ele carrega uma marca em sua testa que fecha todas as avenidas de avanço diante dele, e o desânimo de seu coração, que o torna imprudente da opinião pública quanto a seus atos, é apenas a resposta interior ao fato aparente de que, tornar-se o que ele individualmente pode, ele não pode subir nas classes acima dele. É provavelmente impossível para qualquer um de nós perceber o fardo mortífero dessa falta de esperança. A escravidão prende as asas de todos os espíritos elevados e faz com que suas ambições voltem para remorder a língua em um sofrimento vazio. No entanto, uma avaliação adequada da escravidão é uma das condições para a compreensão da gravidade do problema que está diante de nós, em nossos esforços para educar e elevar os negros a ocupar o lugar que lhes é devido em nossa civilização cristã.[15]
O analfabetismo entre os negros estava aumentando, o que era apenas mais desmoralizante. Eles foram “libertos”, mas deixados praticamente sem esperança, “paralisados” em uma sociedade de “castas perversas”. Warfield usou esse termo conscientemente, insistindo que fosse no mínimo assim chamado: não se pode negar que era, de fato, uma sociedade de castas, e que essa sociedade de castas era obviamente perversa para qualquer um que visse. E assim Warfield pressionou a responsabilidade da sociedade – e especialmente dos cristãos – em ajudar os libertos e seus filhos em sua causa, e ajudá-los em elevar-se a todo o seu potencial na sociedade.
Nunca é demais enfatizar que não é ele quem se sente persuadido de que o negro foi feito um pouco menor que o homem, quem está graciosamente disposto a treiná-lo para a aptidão para tal posição, e quem pode educá-lo em verdade e masculinidade autocentrada. É só ele quem está completamente persuadido de que Deus fez de um só sangue todas as nações da terra, quem tem o espírito missionário, ou quem pode servir como a mão do Altíssimo para elevar os humildes e resgatar os oprimidos.[16]
Warfield critica a sociedade de castas do norte e do sul. Ele relata a história de uma mulher negra que ele conhecia que foi assistir a uma reunião de reavivamento em uma igreja. Quando ela chegou, os anciãos da igreja pediram que ela fosse embora. Ele relata outra história de episcopais se gabando de terem se saído bem em relação às relações raciais em sua igreja, afirmando alegremente que os negros tinham permissão de comparecer aos seus cultos: “lugares foram reservados para eles em todas as igrejas”. Warfield lamenta que, em praticamente todo canto da sociedade, eles eram instruídos a saber qual era o “lugar deles”. Mesmo na congregação dos santos, o lugar deles não era no meio dos filhos de Deus, mas separados de lado. A tudo isso, Warfield exclama abruptamente: “Estamos hoje invertendo a declaração inspirada de que em Cristo Jesus não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre?”[17] Esse tipo de tratamento contínuo destrói a esperança, paralisa o esforços, e corta todo o incentivo ao crescimento próprio. À luz de tudo isso, Warfield pede aos cristãos que forneçam a ajuda necessária em todos os níveis:
Se é preciso uma verdadeira moralização dos negros, isso só pode ser assegurado por um ensino moral cuidadoso, tal como pode ser fornecido apenas por organizações religiosas que irão educar assim como pregar. Um treinamento secular fará um bem insignificante; a pregação ocasional do evangelho não será profunda o suficiente. Nós precisamos ter escolas cristãs em todos os lugares, onde o cristianismo como um sistema revelado de verdade e prática seja diariamente ensinado por homens e mulheres cujos corações estejam cheios de fervor missionário – que encontram em toda criatura de Deus a promessa e a força de uma vida melhor.[18]
Em 1888, Warfield começa o “Drawing the Color Line” [Delimitando a Fronteira da Cor] com uma referência a dois artigos de jornais que afirmavam que as relações raciais haviam melhorado muito, o que era uma afirmação que Warfield achou espantosa. Em vez disso, Warfield alega que “a emancipação aboliu apenas a submissão privada mas não a pública” e “tornou o ex-escravo não um homem livre, mas apenas um negro livre”.[19] Então, em palavras que parecem proféticas, escreveu:
As populações negras que, como uma classe, emergiram da escravidão sem nenhum senso de injustiça para reclamar, mas sim com uma intensa apreciação das gentilezas que haviam recebido de seus mestres, e com uma verdadeira gratidão pela elevação que receberam em suas mão através de uma ou duas gerações que os separavam da vaga lembrança da África selvagem, foram gradativamente se tornando, sob a irritação de grandes e pequenas injustiças repetidas continuamente, cada vez mais compactadas em uma massa tenebrosa de murmúrio descontente, a qual assegura seu desenvolvimento para um verdadeiro antagonismo racial também no lado deles.[20]
Warfield previu que o desprezível tratamento dos negros naquela sociedade de castas criaria em troca apenas ressentimento e ódio. Os levantes sociais e os distúrbios raciais que os EUA testemunhariam apenas décadas depois não teriam surpreendido Warfield – ele previu isso.
Warfield recita as ações das denominações episcopais e presbiterianas em relação à “linha da cor” e observa que não havia pastores negros de congregações de brancos e que existiam muitas igrejas separadas para os negros. A profundidade de suas convicções aqui é revelada em seus comentários relacionados à reunião proposta com os presbiterianos do sul. Reunir-se com os presbiterianos do sul – com seus luminares como Robert Louis Dabney – foi um movimento que Warfield teria preferido, mas não se isso significasse tolerar a contínua segregação que era “praticamente universal” no corpo do sul.[21]
Pode a história incorporada em tais exemplos ser perdida? Os homens cristãos, sob a pressão de sua antipatia racial, abandonam a lei fundamental da Igreja do Deus vivo, de que em Cristo Jesus não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre.[22]
Na carta mencionada acima, para Joseph William Torrence, Warfield fala com mais clareza: “que [a Igreja do Sul] não está acordada com seu dever para com os liberto e que a união orgânica com ela prejudicaria se não destruiria nosso trabalho entre eles. Oremos contra a reunião deles em qualquer futuro próximo.[23]
Mais uma vez, as convicções de Warfield sobre esse assunto tinham uma base teológica dupla: 1) a unidade da humanidade em Adão, criada à imagem de Deus, e 2) as vinculações niveladoras do evangelho. Sua posição pode ter sido impopular, mas estava firmemente fundamentada. E para ele havia apenas uma opção: o sistema de castas e o próprio “espírito de casta” deviam ser totalmente repudiados por todos. Nenhum tipo de racismo é uma opção cristã, e não há espaço cristão para tolerá-lo em qualquer nível.
Previsivelmente, os comentários publicados por Warfield atraíram oposição. Encontramos isso em sua correspondência, como a carta de Torrence já citada sugere. Outro ministro responde com receios do que aconteceria se o conselho de Warfield fosse seguido: igualdade dos pastores negros e brancos, pastores negros em posições de liderança denominacional, respeito igual ao das mulheres negras e brancas, e – o mais impensável de todos – casamento inter-racial. Certamente Warfield simplesmente não pensara nas implicações de sua posição!
Em sua resposta, Warfield, tipicamente, se volta para as Escrituras – neste caso, Tg 2:1-13, Ef 3:1 e 1Tm 3:15 – e escreve com uma exortação correspondente:
Tudo isso não é uma preocupação sua e minha. Pois, pelo fato de a Igreja ser o pilar e a base da Verdade pela qual o mundo deve ser salvo, o Senhor não deixou de nos aconselhar, mas nos deu instruções sobre como devemos nos comportar na Igreja do Deus vivo… Não posso deixar de acreditar que não há caminho tão sábio, bom e leal tal como simplesmente permitir que Deus ordene a sua própria casa a seu próprio modo e que alegremente nos escolha para estar ao seu lado. Tenhamos cuidado para que, ao organizarmos as coisas para nós mesmos e ao ajustarmos nossos preconceitos pessoais, não construamos de fato um reino, mas um reino que não é para Deus ou de Deus e abençoado por Ele. [24]
A mensagem contundente de Warfield era clara: não devemos fingir ser mais sábios que Deus. Se estas preocupações que você expressou não são preocupações de Deus, então elas não devem ser nossas.
Em 1907, Warfield publicou seu apelo em um poema intitulado “Procurado – Um Samaritano”. Aqui ele aplica a parábola do bom samaritano às sensibilidades e comportamentos contemporâneos. A aplicação – a moral da história, podemos dizer – é reservada para a última linha, mas a pancada é contundente:
Deitado na estrada ele estava
Ferido e dolorido:
Sacerdotes, levitas, por aquele caminho passavam
E viraram a cabeça de lado.
Não eram homens rígidos
Na negligência do serviço humano:
Sua necessidade era grande: mas então,
Veja, seu rosto, era preto.[25]
Em 1913, enquanto Warfield atuava como presidente do seminário, ele agia administrativamente de acordo com essas convicções. O corpo docente sustentou que brancos e negros deveriam permanecer socialmente separados, e Machen, o colega mais novo de Warfield na época, reclamou em carta à sua mãe que Warfield unilateralmente rejeitara o protesto e permitiu que um estudante negro morasse no dormitório de estudantes em Alexander Hall.[26] Warfield praticou o que pregou.
Em uma revisão de 1918 da Enciclopédia da Religião e Ética de James Hastings,[27] Warfield discorda de um artigo sobre “Negros nos Estados Unidos”, de William O. Carver, do Seminário Teológico Batista do Sul. Warfield caracteriza o artigo de Carver como apoiando entusiasticamente uma América permanentemente segregada – “duas raças, separadas uma da outra por barreiras sociais intransponíveis, cada uma possuindo uma consciência racial cada vez mais intensificada e seguindo, sem se importar com a outra, seus próprios ideais raciais”.[28]
Warfield contesta, e argumenta em vez de uma posição integracionista:
Esse [ponto de vista de Carver expresso no artigo da enciclopédia] considera o negro como (de acordo com uma teoria atual da natureza do crescimento do câncer, para todos os efeitos) apenas um câncer permanente no corpo político. Podemos suspeitar que não é um sentimento inexplicável de repulsa racial que impele o Dr. Carver a repelir com uma decisão precisa a previsão de que a fusão das raças deve ser a questão final. Com a imigração branca contínua e a alta taxa de mortalidade dos negros contribuindo com a diminuição progressiva da proporção da população negra para o branco, não é natural se esperar por sua absorção final? Ou seja, em meio milênio ou menos? Esse não é, no entanto, nosso problema: para nós e nossos filhos e nossos netos, as duas raças em diferenciação bem marcada formarão elementos desproporcionais no mesmo Estado. O que claramente temos que fazer é aprender a viver juntos em solidariedade, respeito e auxílio, e trabalhar juntos para a realização de nossos ideais nacionais e a conquista do objetivo de uma civilização verdadeiramente cristã.[29]
Mais uma vez, Warfield pede o fim da segregação.
Carver concluiu seu artigo com um chamado a viver juntos em busca de objetivos comuns, e por isso Warfield faz um comentário mais favorável: “É com isso que o Dr. Carver nos exorta corretamente em suas palavras finais. Com efeito, é uma exortação à consolidação política e social, – se não ainda racial. Afinal, estamos todos, para o melhor e para o pior, atados no mesmo feixe de vida.”[30] Em nenhum lugar Warfield expõe longamente suas convicções quanto ao racismo. Contudo, suas várias referências à questão são explícitas e pungentes. Ele critica a segregação em qualquer nível, na sociedade em geral e especialmente na igreja. O orgulho racial é uma negação de nossa unidade em Adão e de nossa criação compartilhada à imagem de Deus. E o orgulho racial na igreja implica um mal adicional – uma negação de nossa unidade e estado compartilhado em Cristo; Para Warfield, isso constitui uma negação do evangelho e é motivo de separação eclesiástica.
É impossível medir a influência que Warfield pode ter ou não em relação às atitudes raciais, mas não temos evidências de que sua voz tenha sido amplamente ouvida. Alguns podem argumentar que encontramos, mesmo nos traços de Warfield, sentimentos paternalistas que ainda o prendiam aos seus dias. Mesmo assim, as condenações de Warfield estavam à frente de seu tempo. Ele era um corretivo necessário para o seu dia, cuja voz certamente não foi ouvida o suficiente. Ele serve como um guia para nós ainda hoje. Ele condena o racismo nos dois níveis mais fundamentais – criação e redenção – e insiste que nós permitamos que as implicações desses ensinamentos bíblicos funcionem em vias de uma sociedade e de uma igreja completamente integrada, com igualdade de direitos e privilégios a todos.
A sociedade de “castas perversas” que Warfield deplora não é, felizmente, a América de hoje. A escravidão está no passado, assim como a reconstrução e as leis de Jim Crow. Mas tudo deixou uma cicatriz de racismo que permanece. Poucos argumentariam que conseguimos, como atestam os recentes acontecimentos nos EUA. Preconceito e ressentimento permanecem. No entanto, o caminho a seguir é simples, só se o orgulho não estivesse no caminho: uma vez que reconhecemos nossa unidade em Adão (e em Noé!), criados à imagem de Deus, e uma vez que reconhecemos as necessárias vinculações do evangelho pelo qual estamos unidos uns aos outros em nosso Redentor, resta apenas submeter nossas mentes, nossas decisões, nossas atitudes e nosso comportamento em acordo mútuo.
[1] Benjamin B. Warfield, Studies in Theology: The Works of Benjamin B. Warfield, vol. 9 (Grand Rapids: Baker, 1991), 235–58.
[2] Ibid., 9:252.
[3] Ibid., 9:256.
[4] Ibid., 9:257.
[5] Ibid., 9:257–58.
[6] Ibid., 9:258.
[7] B. B. Warfield, Letter to Joseph William Torrence, 7 January, 1887 (Princeton Theological Seminary Archives, Warfield Papers, box 17). Bradley Gundlach provides the most complete background for this generally available. See his “‘Wicked Caste’: Warfield, Biblical Authority, and Jim Crow,” in Gary L. W. Johnson, ed., B. B. Warfield: Essays on His Life and Thought (Philipsburg, NJ: P&R Publishing, 2007), ch. 6, esp. pp. 139–47. See also James H. Moorhead, Princeton Seminary in American Religion and Culture (Grand Rapids: Eerdmans, 2012), 252–55.
[8] There is, however, a story from the Warfield family of Robert Jefferson Breckinridge who, upon turning age 16, beat up an older family slave—to prove his manhood, it seems—an offense for which he received due punishment. In fairness, it should also be pointed out that as an older man Breckinridge championed emancipation.
[9] B. B. Warfield, Benjamin B. Warfield: Selected Shorter Writings, ed. John E. Meeter, 2 vols. (Philipsburg, NJ: P&R Publishing, 2001), 2:743.
[10] Ibid., 2:735.
[11] Ibid., 2:735.
[12] Ibid., 2:736–37.
[13] Ibid., 2:737–40.
[14] Moorhead, Princeton Seminary, 253.
[15] Selected Shorter Writings, 2:738–39.
[16] Ibid., 2:740.
[17] Ibid., 2:739–41.
[18] Ibid., 2:742.
[19] Ibid., 2:744.
[20] Ibid., 2:744.
[21] Ibid., 2:740, 746–48.
[22] Ibid., 2:748.
[23] Cf. Gundlach, “Wicked Caste,” 163–65; Moorhead, Princeton Seminary, 253–55.
[24] B. B. Warfield, Letter to R. M. Carson, 3 March 1887 (Princeton Theological Seminary Archives, Warfield Papers, box 17). See Gundlach, “Wicked Caste,” 157.
[25] “Wanted–A Samaritan,” in The Independent LXII (31 January 1907), 251; republished in B. B. Warfield, Four Hymns and Some Religious Verses (Philadelphia: Westminster Press, 1910), 11. See David B. Calhoun, Princeton Seminary, vol. 2: The Majestic Testimony 1869–1929 (Carlisle, PA: Banner of Truth, 1996), 326, 505.
[26] Calhoun, Princeton Seminary, 505.
[27] B. B. Warfield, review of Encyclopedia of Religion and Ethics by James Hastings, PTR 16 (1918): 110–15.
[28] Ibid., 114–15.
[29] Ibid., 115.
[30] Ibid.
Por: Fred G. Zaspel. © Themelios. Website: thegospelcoalition.org/themelios. Traduzido com permissão. Fonte: Reversing the Gospel: Warfield on Race and Racism.
Original: Invertendo o Evangelho: B. B. Warfield sobre Raça e Racismo. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados.
Fred G. Zaspel
Fred G. Zaspel (PhD, Free University of Amsterdam) serve como pastor na Reformed Baptist Church em Franconia, Pensilvânia, professor adjunto de teologia sistemática no Southern Baptist Theological Seminary, e editor executivo da Books At a Glance. Ele é o autor de The Theology of B. B. Warfield (2010) e Warfield on the Christian Life (Crossway, 2014) e publicou inúmeros livretos, artigos e resenhas de livros.