Exposição pronunciada na quinta-feira, 11 de abril de 1861, Como abertura de uma série de conferências, pronunciadas por diversos pregadores convidados por ocasião da abertura do Tabernáculo Metropolitano, em Newington, Londres.
Os trabalhos se iniciaram, sob a presidência de C.H.Spurgeon, as 15:00 horas, com o cântico do hino nº 21:
Salvos do poder condenatório do pecado,
Tremenda maldição da Lei,
Cantos sacros começaremos,
Onde Deus conosco começou.
Cantaremos a vasta, imensurável Graça,
A qual, desde antanho
Seus filhos eleitos abraçou,
Como ovelhas em seu aprisco.
A base de eterno amor
Sustentará o alicerce da misericórdia;
Terra, inferno ou pecado, igualmente
Em vão conspirarão.
Cantai, vós, pecadores comprados por sangue,
Saudai o grande uno e trino Deus,
Contai quão firme já era a aliança,
Antes mesmo que o tempo começasse o seu curso.
Não sentiríeis a culpa do pecado,
Nem o dulçor do amável perdão
Se vossos indignos nomes
Não estivessem arrolados para a vida celestial.
Oh! Que doce e exultante canto,
A romper a abóbada celestial,
Quando, bradando a graça, as hostes redimidas
Contemplarão o mover de suas lápides!
O Rev. George Wyard, de Deptford, fez uma oração.
O Rev. C. H. Spurgeon, dando início aos trabalhos, disse:
Nós já nos reunimos sob este teto para definir a maior parte das verdades de que consistem as peculiaridades desta Igreja. Na noite de ontem, nos esforçamos por demonstrar ao mundo que nós reconhecemos de coração a unidade essencial da Igreja do Senhor Jesus Cristo. E agora, nesta tarde e noite, é nossa intenção, por meio dos lábios de nossos irmãos, demonstrar as coisas que são verdadeiramente recebidas entre nós, e especialmente aqueles grandes pontos que tão amiúde foram atacados, mas que ainda são tidos e mantidos – verdades que nós provamos, em nossa experiência, serem cheias de graça e de verdade. Minha única função nesta ocasião é apresentar os irmãos que se dirigirão a vós outros, e o farei tão brevemente quanto possível, fazendo como que um prefácio a suas comunicações.
A polêmica que tem prosseguido entre os calvinistas e os arminianos é sumamente importante, mas não envolve a questão crucial da santidade pessoal de tal forma que torne a vida eterna dependente de se esposar um ou outro desses sistemas teológicos. Entre os protestantes e os papistas há polêmicas dessa natureza, de modo que aquele que é salvo, por um lado, pela fé em Jesus, não ousa concordar que seu oponente, do lado oposto, possa ser salvo no que depender de suas próprias obras.
Ali, a polêmica é por vida ou morte, porque gira sobre a Doutrina da Justificação pela Fé, a qual Lutero apropriadamente chamou de “a doutrina de verificação”, pela qual uma Igreja permanece ou cai. A polêmica, novamente, entre o crente em Cristo e o Sociniano, é uma que concerne a um ponto vital. Se o Sociniano estiver correto, estamos em abominável erro, e nós de fato somos idólatras – como haveria de habitar em nós a vida eterna? E se estamos corretos, nossa maior caridade não nos permitiria imaginar que um homem pode entrar no Céu sem crer na real divindade do Senhor Jesus Cristo. Há outras polêmicas, portanto, que atingem o centro, e tocam a própria essência da questão.
Eu entendo, porém, que todos estamos livres para admitir que, conquanto John Wesley, por exemplo, em tempos recentes defendeu com zelo o arminianismo, e por outro lado, George Whitefield com igual fervor lutou pelo calvinismo, nenhum de nós deve estar preparado, seja em que lado estivermos, para negar a santidade de um ou de outro.
Não podemos fechar nossos olhos para o que cremos ser o crasso erro de nossos oponentes, e devemos nos achar indignos do nome de homens honestos, se pudermos admitir que eles estejam certos em todas as coisas, e nós também o estejamos! Um homem honesto tem um intelecto que não o permite crer que “sim” e “não” podem ambos subsistir ao mesmo tempo e serem ambos verdadeiros. Não posso dizer “é”, e meu irmão, à queima-roupa, dizer “não é”, e ambos estarmos corretos quanto ao assunto! Estamos dispostos a admitir – de fato, não ousamos dizer o contrário – que a opinião neste assunto não determina o estado futuro ou mesmo o presente, de qualquer homem!
Ainda assim, entendemos que ele é tão importante que, ao manter nossa posição, prosseguimos com toda a coragem e fervor de espírito, crendo que estamos fazendo a obra de Deus, e mantendo as mais importantes verdades de Deus. Pode ocorrer nesta tarde que o termo “calvinismo” seja usado com frequência. Não seja ele mal-compreendido: só usamos o termo por brevidade. A doutrina que se chama de “calvinismo” não surgiu com Calvino; cremos que ela surgiu do grande Fundador de toda a verdade.
Talvez o próprio Calvino tenha se baseado nos escritos de Agostinho. Agostinho baseou suas opiniões, sem dúvida, pelo Espírito de Deus, do diligente estudo dos escritos de Paulo, e Paulo os recebeu do Espírito Santo, de Jesus Cristo, o grande Fundador da dispensação cristã. Usamos o termo, portanto, não porque atribuamos qualquer importância extraordinária ao fato de Calvino ter ensinado estas doutrinas. Nós nos disporíamos a chamá-las por qualquer outro nome, se encontrássemos um pelo qual elas fossem melhor compreendidas, e o qual condissesse com a realidade.
E, de novo, nesta tarde, provavelmente teremos de falar dos arminianos, e com isso, não insinuamos, em momento algum, que todos aqueles que pertencem ao grupo arminiano mantêm essas opiniões em particular. Há calvinistas ligados a igrejas calvinistas, que não são calvinistas em suas opiniões, carregando o nome, mas descartando o sistema.
Há, por outro lado, não poucos nas igrejas metodistas que, na maioria dos assuntos, concordam perfeitamente conosco, e creio que se a questão fosse peneirada a fino, descobriríamos que concordamos mais em nossas opiniões particulares do que em nossas confissões públicas, e nossa religião devocional é mais uniforme do que nossa teologia. Por exemplo, o hinário do Sr. Wesley, o qual pode ser contemplado como uma declaração de sua teologia, tem nele alguns itens de calvinismo mais elevado do que muitos dos livros que nós usamos! Eu já fui grandemente tocado pelas fortes expressões que ele emprega, muitas das quais eu mesmo teria hesitado em usar.
Pedirei a vossa atenção enquanto cito estrofes dos hinos do Sr. Wesley, os quais todos nós podemos subscrever plena e diretamente, pois em harmonia com as Doutrinas da Graça – bem mais do que a pregação de alguns calvinistas modernos. Faço isso porque nossos batistas de baixa doutrina e morisonianos precisam despertar para a grande diferença que há entre eles e os arminianos evangélicos.
Hino 131, estrofes 1, 2 e 3.
Senhor, me desespero por cura:
Eu vejo meu pecado mas não o sinto,
Nem sentirei, até que sopre o teu Espírito,
E faça fluir as obedientes águas.
Tu tens um coração de carne para dar,
Teus dons só posso receber;
Tudo a ti, aqui te entrego
Para tomar, redimir e selar – tudo teu.
Com símplice fé em ti, eu clamo,
Minha luz, minha vida, meu Senhor, meu tudo.
Eu espero o mover das águas,
Aguardo a Palavra que, ao falar, me torna são.
Hino 133, estrofe 4
Teu áureo cetro celestial
Estende a mim; eis, meu coração prostro,
Dize a minha alma, “És meu amado,
Meu escolhido, dentre os milhares, és tu.”
Isso fecha com a [doutrina da] eleição.
Hino 136, estrofes 8, 9, 10.
Não terei descanso, até que no teu sangue
Plena redenção eu tenha.
Tu, porém, por cujo intermédio venho a Deus,
Podes de todo salvar.
Do pecado, da culpa, do poder e da dor
Redimirás minha alma;
Senhor, creio, e não em vão,
A fé me salvará.
Eu, também, como tu, andarei em vestes brancas,
E com todos os teus santos provarei
O comprimento, a largura e a altura
E a profundidade do perfeito amor.
Irmãos e irmãs, não é isso a Perseverança Final? E o que se quer dizer na próxima citação, se o povo de Deus puder afinal perecer?
Hino 138, estrofes 6 e 7
Quem, quem na tua presença entrará
E te rivalizará em onipotência?
E te arrancará o que em tua destra seguras,
Ou dela arrancará o pecador?
Jurado a destruir, à terra assolar,
Perto para salvar tu estás,
Maior do que todos os poderes do inferno
E maior do que meu coração.
Este próximo hino é bem marcante, especialmente quando usa a expressão “força-me”. Segue na íntegra:
Hino 158
Ó Deus meu, que farei?
Só tu o caminho podes mostrar,
Nesta hora podes me salvar.
Me falta a vontade e o poder;
Se sobre todas as coisas és Deus,
Maior que meu coração pecador,
Revela-me todo o teu poder,
E me arranca este coração de pedra.
Tira de mim o pecado que acalento,
Torna-me disposto a ser purificado,
Faze-me disposto a receber
Tudo que tua bondade está pronta a me dar.
Força-me, Senhor, a de tudo abrir mão,
Arranca os ídolos do meu coração,
Teu onipotente amor mostra a mim,
Nova criatura torna-me, enfim.
Jesus, poderoso, me vem renovar;
Opera em mim o querer e o realizar
Muda a maré da minha natureza,
Estanca a torrente do meu orgulho,
Cessa o turbilhão da minha vontade,
Tu, que falaste e fizeste o sol parar,
Vem teu potente amor revelar,
Nova criatura me faz.
Braço de Deus, de força te investe,
Desce aqui, do alto dos céus,
A minha descrença derruba.
Rebaixa a minha altivez,
Conquista o inimigo que tens em mim,
Reclama para ti a vitória,
Salva da raça o mais vil exemplar:
Força-me a ser salvo pela tua graça.
Hino 206, estrofes 1 e 2
Que sou eu, ó glorioso Deus?
E que é para ti a casa de meu pai,
Que tu tamanhas misericórdias concedestes
A mim, o verme mais vil?
Recebo a bênção que vem do alto,
E me maravilho por teu amor sem limites.
Por mim, ensangüentado, teu amor passou
E parou, para minha ruína acolher.
Choraste por minha alma, teu compassivo olhar,
Teu coração ansiou e bradou, “Vive!”
Moribundo, ouvi soar tua acolhida
E perdão na tua misericórdia encontrei.
Em vista de bons e abundantes frutos como estes versos, sou compelido a dizer que, ao atacar o arminianismo, não nutrimos hostilidade aos homens que carregam esse nome, e não a natureza desse erro, e nos opomos não a qualquer grupo de homens, mas às idéias que eles esposam.
E, agora, tendo feito essas observações sobre os termos que empregamos, devemos observar que não há nada sobre o que os homens precisam ser mais instruídos do que na questão do que é de fato o calvinismo. As mais infames alegações foram trazidas contra nós, e por vezes, temo, por homens que sabiam ser elas totalmente falsas; e assim, até o dia de hoje, há muitos de nossos oponentes que, quando ficam sem argumentos, inventam e criam para si mesmos um espantalho – chamemo-lo de João Calvino – e então atiram todas as suas flechas contra ele!
Não viemos aqui defender seu espantalho – atirem nele e queimem-no o quanto quiserem, e se isto lhes convier, oponham-se a doutrinas que jamais foram ensinadas, e ralhem contra ficções que, exceto em seus próprios cérebros, jamais existiram. Viemos aqui afirmar quais de fato são nossas opiniões, e confiamos que qualquer um que não concordar conosco fará a justiça de não nos representar falsamente. Se puderem provar o erro de nossa doutrina, que o façam justamente, e as derrubem, mas por que deveriam primeiro fazer uma caricatura dela, e depois tentar derrubá-la?
Dentre as grosseiras mentiras que foram proferidas contra os calvinistas propriamente ditos, está a torpe calúnia de que defendemos a condenação dos infantes. Jamais se proferiu mentira mais baixa! Pode ser que já tenha existido, em algum lugar nalgum canto do mundo, um descrente que ouse dizer que haja criancinhas no inferno, mas eu jamais me encontrei com ele, nem conheci homem que dissesse já ter visto tal pessoa! Dizemos, com relação às criancinhas, que as Escrituras falam muito pouco e, portanto, onde as Escrituras são confessadamente lacônicas, não cabe ao homem dogmatizar.
Creio, porém, que falo por todo o nosso corpo, ou certamente com pouquíssimas exceções, as quais desconheço, quando digo que defendemos que todas as criancinhas são eleitas de Deus e, portanto, salvas, e encaramos isto como o meio pelo qual Cristo verá render o trabalho de sua alma, e às vezes temos esperança de que assim a multidão dos salvos poderá exceder a multidão dos perdidos. Quaisquer opiniões que nossos amigos tenham nesta questão, elas não estão necessariamente desligadas da doutrina calvinista. Creio que o Senhor Jesus, que disse: “Das tais é o reino dos céus”, diária e constantemente recebe em seus braços amorosos os pequeninos que mal nascem e já são levados ao céu. Nosso hinos não dão mau testemunho de nossa fé neste ponto. Um deles diz:
Milhões de almas de infantes
Formam a família do alto.
Toplady, um dos mais notáveis dentre os calvinistas, pertenceu a este número. “Em minhas notas”, ele diz, “sobre o Dr. Nowell, eu testifiquei minha firme crença de que as almas de todos os infantes falecidos estão com Deus na Glória; de que, no decreto da predestinação para a vida, Deus as incluiu todas quantas ele decidiu chamar para si na infância, e que o decreto da reprovação nada tem a ver com elas.” Não, ele prossegue, e pergunta com razão, como o anti-calvinístico sistema da salvação e eleição condicional ou presciência das boas obras, se coadunará com a salvação dos infantes? É patente que os arminianos e pelagianos precisam introduzir um novo princípio da eleição e, no que diz respeito à salvação dos infantes, se tornar calvinistas!
Não é um argumento a favor do calvinismo, que seu princípio seja totalmente uniforme, e que nenhuma mudança é necessária para definir qual homem seja salvo, quer jovem, quer velho? John Newton, de Londres, amigo de Cowper, conhecido por seu calvinismo, sustenta que as crianças no céu excedem o número de seus habitantes adultos em toda a sua multidão. Gill, um dos campeões do calvinismo, sustenta que todos os que morrem na infância são salvos. Um inteligente escritor moderno (Dr. Russel, de Dundee), também calvinista, sustenta as mesmas opiniões; e quando se considera que perto de metade da raça humana morre na infância, é fácil ver que vasto aumento ocorre a cada dia e hora na bendita população do Céu!
Uma acusação mais comum, trazida por pessoas mais decentes – pois devo dizer que a anterior nunca é trazida senão por pessoas desqualificadas – é a de que sustentamos um claro fatalismo. Agora, pode ser que haja calvinistas que sejam fatalistas, mas calvinismo e fatalismo são duas coisas distintas. Não é verdade que a maioria dos cristãos sustenta a doutrina da Providência de Deus? Não é verdade que a maioria dos cristãos, de fato, todos os que crêem em um Deus, defendem a doutrina de sua presciência?
Todas as dificuldades que se põem contra a doutrina da Predestinação podem, com igual força, ser postas contra a da Presciência divina. Cremos que Deus predestinou todas as coisas desde o princípio, mas há uma diferença entre a predestinação de um Deus inteligente, onisciente e generoso, e o fatalismo cego que simplesmente diz “É assim porque tinha de ser assim”. Entre a predestinação das Escrituras e a sina do Corão, todo homem sensato deve perceber uma diferença essencial.
Não negamos que a questão esteja de tal modo ordenada que ela deva ser como é, mas ela é porque o Pai, Deus, cujo nome é Amor, o ordenou; não é pela necessariedade das circunstâncias que tal e tal coisa deve acontecer. Embora as engrenagens da Providência girem com rígida exatidão, não o fazem sem propósito e sabedoria. Essas engrenagens estão cheias de olhos, e tudo que é ordenado, é ordenado de modo que conduza à maior de todas as metas, a glória de Deus, e abaixo disto, o bem de suas criaturas.
Porém, somos em seguida interpelados por alguns que nos dizem que pregamos a vil e horrenda doutrina da reprovação soberana e imeritória. “Oh!”, dizem eles, “vós pregais que os homens são condenados porque Deus os fez para serem condenados, e eles vão para o inferno, não por causa do pecado, não por causa da descrença, mas por causa de algum sombrio decreto com o qual Deus carimbou seus destinos.” Irmãos e irmãs, esta é, novamente, uma acusação injusta!
A eleição não envolve a reprovação! Pode haver alguns que defendem a reprovação incondicional – e não estou aqui para defendê-los – que eles se defendam o melhor que possam; eu defendo a eleição divina, mas testifico de forma igualmente clara que se algum homem se perde, ele se perde por causa do pecado! E esta tem sido a declaração uniforme dos ministros calvinistas. Posso encaminhá-los aos nossos símbolos, tais como o Catecismo da Assembléia de Westminster, e todas as nossas Confissões, pois elas afirmam, com distinção, que o homem se perde pelo pecado, e que não há punição posta contra qualquer homem senão à que ele grande e justamente merece.
Se qualquer um de vós já pronunciou uma tal acusação contra nós, não torne a fazê-lo, pois somos tão inocentes disto quanto vós. Falo pessoalmente – e creio que nisto tenho os votos de meus irmãos – sei que a determinação de Deus se estende a todas as coisas; mas não subo a este púlpito, nem a qualquer outro, para atribuir a condenação de qualquer homem em qualquer lugar, senão a si mesmo. Se ele se perdeu, a condenação é toda do homem; porém, se ele se salvou, a salvação é toda de Deus. Para afirmar este argumento importante de forma mais clara e explícita, citarei um apto teólogo presbiteriano:
“O fiel metodista é ensinado que o calvinista imagina um Deus que cria homens para destruí-los. Ele é ensinado que calvinistas defendem que os homens se perdem, não porque pecam, mas porque não foram eleitos. Crendo que esta afirmação seja verdadeira, é de surpreender que o metodista chegue a se declarar, se não um arminiano, pelo menos um anti-predestinacionista? Porém, nenhuma declaração poderia ser mais escandalosamente falsa! É o ensino uniforme do calvinismo que Deus cria todos para a sua própria glória; que ele é infinitamente justo e benigno, e que onde o homem perece, perece apenas por seus próprios pecados.”
Falando-se em sofrimento, seja neste mundo ou no porvir, quer com relação a anjos ou a homens, os símbolos de Westminster (que podem ser considerados a mais autorizada declaração moderna do sistema) invariavelmente liga a punição com o pecado anterior, e somente com o pecado. “Quanto aos homens ímpios e vis a quem Deus, como justo juiz, pelos pecados antecedentes, cega e endurece, de quem não apenas retém sua graça, pela qual poderiam ter sido iluminados em sua compreensão e trabalhados em seus corações, mas às vezes também retira os dons que tinham, e os expõe a tais coisas que sua corrupção se torne ocasião de pecado, e os entrega às suas próprias paixões, às tentações do mundo e ao poder de Satanás, do que decorre que eles se endurecem a si mesmos, mesmo diante dos meios que Deus usa para amaciar outros.”
O Catecismo Maior, ao tratar dos réprobos entre anjos e homens, diz: “Deus, segundo seu poder soberano e o insondável conselho de sua própria vontade (pela qual estende ou retém favor como lhe apraz), se afastou e preordenou os demais para a desonra e a ira, para serem afligidos por seus pecados, para o louvor da glória da sua justiça.” Novamente, “a finalidade de ter Deus apontado este dia (o do Juízo Final) é para a manifestação da glória da sua misericórdia na salvação eterna dos eleitos, e da sua justiça na condenação dos réprobos, os quais são ímpios e desobedientes.”
Isto não é nada mais do que os metodistas e todos os demais grupos evangélicos reconhecem – que onde os homens perecem, é pela consequência de seu pecado. Se perguntam, por que ao pecado, que destrói, foi permitido entrar no mundo, é uma questão que cabe não apenas aos calvinistas, mas igualmente a todos os demais grupos. Isso diz tanto respeito a eles quanto aos calvinistas, e têm igualmente o dever de respondê-lo; essa questão não está limitada nem mesmo aos cristãos.
Todos quantos crêem na existência de Deus – em seu justo caráter e perfeita providência – têm igualmente a obrigação de respondê-la. Qualquer que seja a resposta dos outros, a do calvinista pode ser considerada como a dada na afirmação da Confissão de Fé, que declara que a providência de Deus se estende até a primeira queda, e outros pecados de anjos e homens etc., “de modo que a sua pecaminosidade precede tão-somente da criatura, e não de Deus, o qual, sendo totalmente santo e justo, não é nem pode ser o autor ou aprovador do pecado.”
É difícil enxergar o que mais poderia ser dito a respeito do assunto, e se tais forem os sentimentos sem dúvida dos calvinistas, então que distorção de sua opinião poderia ser mais grosseira do que a que os descreve dizendo que os pecadores perecem independentemente de seu pecado, ou que Deus seja o autor de seu pecado? Qual é a declaração de Calvino? “Toda alma parte (na morte) para o lugar que tem preparado para si enquanto neste mundo.”
É difícil ser acusado de defender como santa verdade aquilo que se abomina como horrenda blasfêmia, mas é este o tratamento que constantemente tem sido dado aos calvinistas, a despeito das mais solenes e expressivas ressalvas. Contra nada têm eles protestado mais bravamente do que contra o pensamento de que o infinitamente santo, e justo, e amável Jeová seja o autor do pecado; e, no entanto, quão frequentemente os defensores de sistemas rivais os acusam de tê-lo como artigo de fé?
Outra acusação que se nos faz é que não ousamos pregar o Evangelho ao que não foi regenerado, e que, de fato, nossa teologia é tão estreita e entulhada que não conseguimos pregar ao pecador. Cavalheiros, se ousais dizer isto, eu vos levaria a qualquer biblioteca no mundo onde estejam empilhados os velhos pais puritanos, e os deixaria retirar qualquer volume e me dizer se já leram exortações e discursos aos pecadores mais reveladoras em qualquer de vossos livros. Bunyan não interpelou pecadores, e quem o classificaria como outra coisa, senão como calvinista? Charnock, Goodwin e Howe não sofriam pelas almas, e o que eram senão calvinistas? Jonathan Edwards não pregou aos pecadores, e quem mais claro e explícito nessas questões doutrinárias?
As obras de nossos inumeráveis teólogos estão repletas de apelos apaixonados aos não-convertidos. Senhores, se devo fazer uma lista, me faltará o tempo! É fato inconteste que laboramos mais do que eles pelo ganho de almas. Foi George Whitefield menos angelical? Seus olhos verteram menos lágrimas, ou seu âmago foi menos movido de compaixão porque cria no amor da eleição de Deus e pregava a soberania do Altíssimo? É calúnia infundada!
Nossas almas não são de pedra, nosso coração não é menos movido da compaixão que devemos sentir por nosso semelhante; nós todos podemos manter nossa posição com firmeza, e ainda assim chorar como Cristo fez sobre a Jerusalém cuja destruição era certa. Novamente, devo dizer, não estou defendendo certos irmãos cujo calvinismo é exagerado. Falo do calvinismo propriamente dito, não aquele que se deturpou e cresceu além de sua verdadeira beleza e verdor. Falo do calvinismo que encontramos nas Institutas de Calvino, e especialmente em suas Exposições.
Eu as li cuidadosamente. Não tiro minhas opiniões do calvinismo do senso comum sobre o assunto, mas dos livros de Calvino. Nem, ao falar do assunto, quero vingar o calvinismo como se o nome me importasse, mas falo do glorioso sistema que ensina que a salvação é graça, do início ao fim. E, novamente, então, digo que é uma acusação absolutamente infundada a de que não pregamos aos pecadores.
E, mais além, de modo que eu esclareça estes pontos e deixe menos entulho para meus irmãos retirarem, por vezes ouvimos dizer (mas quem o diz precisa voltar à escola e ler os primeiros livros de história) que aqueles que mantêm posições calvinistas são inimigos dos avivamentos. Ora, senhores, na história da Igreja, com pouquíssimas exceções, não se pode encontrar avivamento que não parta da fé ortodoxa. O que não foi a grande obra feita por Agostinho, quando a Igreja subitamente despertou do pestilento e mortífero sono no qual a doutrina pelagiana a havia lançado?
O que não foi a própria Reforma senão o despertar da mente dos homens para estas antigas verdades? Não importa o quando os modernos luteranos possam ter se desviado de suas doutrinas antigas, e confesso que alguns deles não concordariam com o que direi agora, porém, de toda forma, Lutero e Calvino não discordavam acerca da predestinação. Suas posições eram idênticas, e o Debate sobre o livre arbítrio, de Lutero, é um livro tão forte sobre a livre graça de Deus, quanto o próprio Calvino poderia ter escrito. Escutem o grande trovão, quando ele brada no livro: “Que o leitor cristão saiba, portanto, que Deus não prevê nada de maneira contingente, mas ele prevê, propõe e age, de sua eterna e imutável vontade.
Este é o trovão que despedaça e derruba o livre arbítrio”. Preciso mencionar nomes melhores do que Huss, Jerônimo de Praga, Farel, John Knox, Wycliffe, Wishart e Bradford? Preciso fazer mais do que dizer que eles esposavam as mesmas opiniões, e que em seu tempo nada como um avivamento arminiano se ouvia ou sequer se sonhava? E então, vindo para tempos mais modernos, há a grande exceção, esse maravilhoso avivamento sob o Sr. Wesley, no qual os metodistas wesleyanos tiveram tão grande participação; porém, permitam-me dizer, a força da doutrina do metodismo wesleyano é seu calvinismo. A grande massa dos metodistas refuta o pelagianismo, no todo e em suas partes.
Eles afirmaram a total depravação do homem, a necessidade de ação direta do Espírito Santo, e que o primeiro passo no processo de mudança não vem do pecador, mas de Deus. Eles negaram, na época, serem pelagianos. Os metodistas não defendem, tão firmemente como nós, que o homem é salvo pela operação do Espírito Santo, e do Espírito Santo somente?
E não são muitos dos sermões do Sr. Wesley cheios dessa grande verdade, de que o Espírito Santo é necessário à regeneração? Quaisquer erros que ele tenha cometido, ele continuamente pregou a absoluta necessidade do novo nascimento pelo Espírito Santo, e há alguns pontos de mui próxima concórdia; por exemplo, mesmo o da inabilidade humana. Não importa como alguns podem nos ridicularizar, quando dizemos que o homem, por si só, não é capaz de se arrepender ou crer; no entanto, os velhos símbolos arminianos dizem o mesmo.
É verdade, eles afirmam que Deus concedeu graça a todos os homens, mas eles não contestam o fato de que, à parte dessa graça, não há capacidade no homem de fazer o que é bom para sua própria salvação. E assim, permitam-me dizer, se vos voltardes para o continente da América, quão grossa é a falsidade, de que a doutrina calvinista é desfavorável a avivamentos. Vede que maravilhoso movimento sob Jonathan Edwards e outros os quais podemos citar. Ou nos voltemos para a Escócia – o que diremos de Mc’Cheyne?
O que diremos desses renomados calvinistas, Dr. Chalmers, Dr. Wardlow, e antes deles, Livingstone, Haldane, Erskine e semelhantes? Que diremos dos homens de sua escola que, enquanto mantinham e pregavam inabalavelmente as grandes verdades que propomos hoje, Deus tomava deles a palavra e salvava multidões. E se isso não fosse talvez me vangloriar da minha própria obra sob o Senhor, eu poderia dizer que, pessoalmente, nunca vi a pregação dessas doutrinas colocar esta igreja para dormir, mas enquanto temos amado manter essas verdades, ela sofreu pelas almas dos homens, e os 1600 ou mais que eu mesmo batizei, em sua profissão de fé, são testemunhos vivos de que essas velhas verdades em tempos modernos não perderam o seu poder de avivar a religião.
Assim, removi estas alegações em sua raiz; precisarei agora de mais alguns minutos para dizer, com respeito ao sistema calvinista, que há algumas coisas a serem ditas a seu favor, às quais, é claro, atribuo apenas uma pequena importância comparativa, a qual no entanto não deve ser ignorada. É fato que o sistema de doutrinas chamado calvinismo é tão simples e tão facilmente aprendido, que como sistema de teologia é mais facilmente ensinado e mais facilmente apreendido pelas mentes iletradas do que qualquer outro.
Os pobres têm o Evangelho pregado a eles de uma forma que auxilie suas memórias e os encomende a seu entendimento. É um sistema que foi praticamente reconhecido em altas rodas filosóficas por homens como Bacon, Leibnitz e Newton, e ainda assim pode encantar a alma de uma criança e expandir o intelecto de um camponês. E assim ele possui outra virtude. Entendo que esta última não é insignificante, mas há outra – que, quando o calvinismo é pregado, há algo nele que provoca o pensamento.
Um homem pode ouvir sermões sobre a outra teoria que o acompanharão enquanto ele assiste a andorinha suavemente passar rasante sobre o riacho; mas estas antigas doutrinas ou deixam um homem tão raivoso que, ao ir para casa, não consegue dormir de raiva, ou o reduzem a uma total humildade de pensamento, ao perceber a imensidão das coisas que ouviu. De qualquer forma, lhe provoca e lhe move não temporariamente, mas de forma duradoura. Essas doutrinas o assombram, e ele recalcitrante contra os aguilhões, e muitas vezes a palavra força caminho para dentro de sua alma.
E creio que isto não seja um feito irrelevante para uma doutrina causar, nesta era dada ao sono, e com corações humanos tão indiferentes à verdade de Deus. Eu sei que muitos homens foram mais beneficiados em sair raivosos de um sermão do que em serem agradados por ele, pois foi em sua raiva que remoeram a verdade de novo e de novo, e afinal ela queimou seu caminho até seus corações. Eles brincaram com facas, e finalmente se cortaram.
E o calvinismo tem também esta singular virtude: é coerente em todas as suas partes. Não se consegue derrotar um calvinista. Pode-se pensar que é possível, mas não é. As pedras das grandes doutrinas se encaixam tão bem uma na outra, que quanto mais pressão se lhes aplica para as arrancar, mais fortemente elas se unem. E, pode-se anotar: não é possível acolher uma dessas doutrinas sem crer em todas. Tome-se por exemplo que o homem é totalmente depravado, e chegar-se-á à inferência de que certamente, se Deus precisa lidar com tal criatura, a salvação deve vir de Deus somente, e se dele, o ofendido, para a criatura ofensora, então ele tem o direito de dar ou reter sua misericórdia como bem lhe aprouver; assim, se é forçado para a [doutrina da] eleição, e chegando a ela, as outras seguem-se necessariamente.
Alguns ao peneirar seus pensamentos, conseguem manter dois ou três pontos e não os demais, mas entendo que a boa lógica requer que um homem ou mantenha o todo, ou rejeite o todo; as doutrinas se postam como soldados em formação, apresentando de cada lado uma defesa que é perigoso atacar, mas fácil de manter. E, podem escrever, nestes tempos em que o erro é tão abundante e as inovações batalham por serem incontidas, não é pequena coisa pôr nas mãos de um jovem uma arma que possa derrotar seu adversário, cujo manejo ele possa aprender facilmente, a qual ele possa brandir tenazmente, portar com destreza e carregar sem fadiga; uma arma, eu acrescento, que a ferrugem não pode corroer e que golpe nenhum pode quebrar; uma arma penetrante e bem temperada, uma verdadeira lâmina temperada em Jerusalém para feitos de renome. A coerência das partes, embora seja, é claro, insignificante em comparação com outras coisas, não é desimportante.
E afinal, eu acrescento, mas este é o argumento que meus irmãos assumirão – tem sua excelência em ser escriturístico, e consistente com a experiência dos crentes. O homem geralmente se torna mais calvinista à medida em que avança em anos. Isso não é sinal de que a doutrina esteja correta? À medida em que se tornam mais maduros para o céu, enquanto estão se aproximando do descanso que aguarda o povo de Deus, a alma anela por se alimentar no melhor do trigo, e abomina o joio e os espinhos. E então – eu acrescento, e ao fazê-lo, refuto uma calúnia que por vezes foi lançada – essa gloriosa verdade tem esta excelência, que produz os mais santos dos homens.
Podemos olhar para trás em nossos anais, e dizer àqueles que se nos opõem, que não podem mencionar nomes de homens mais santos, mais devotos, mais amorosos, mais generosos, do que aqueles que nós nomeamos. Os santos de nosso calendário, embora não canonizados por Roma, entram em primeiro lugar no livro da vida. Só se precisa ouvir os nomes dos puritanos para evocar nossa reverência. A santidade atingiu uma altura entre eles que de fato é rara, e bem pode ser, pois eles amaram e viveram a verdade.
E se dizeis que nossa doutrina é inimiga da liberdade humana, vos apontamos para Oliver Cromwell e seus bravos Ironsides, calvinistas até o último homem. Se dizeis que ela leva à inação, vos apontamos aos Pais Peregrinos e o deserto que domaram. Podemos pôr nosso dedo sobre cada pedaço de terra em todo o mundo e dizer: “Aqui está algo feito por um homem que creu nos decretos de Deus, e, em fazê-lo, é prova de que essa crença não o tornou inativo, não o ninou à preguiça.”
A melhor forma, porém, de provar este argumento, é em que cada um de nós que defendemos estas verdades, sejamos mais prontos a orar, mais vigilantes, mais santos, mais ativos do que fomos antes, e, ao fazê-lo, silenciaremos a contradição dos tolos. Um argumento vivo é um argumento que comunica a cada homem; não podemos negar o que vimos e sentimos. Caiba a nós, se atingidos e caluniados, desprestigiá-los por uma vida inculpável, e ocorrerá que nossa Igreja e seus sentimentos também emergirão “belos como a lua, claros como o sol e terrível como um exército em estandartes”.
Rev. C. H. Spurgeon
C. H. Spurgeon (1834-1892) era pregador, autor e editor britânico. Foi pastor do Tabernáculo Batista Metropolitano, em Londres, desde 1861 até a data de sua morte. Fundou um seminário, um orfanato e editou uma revista mensal chamada “Sword and Trowel”. Conhecido como “Príncipe dos Pregadores”, Spurgeon escreveu muitos livros e artigos, particularmente na área devocional.
Sermão nº 385—Volume 7 do The Tabernacle Metropolitan Pulpit.