Dez Anos… – Dietrich Bonhoeffer

Dez anos são na vida de qualquer homem um longo tempo. Sendo o tempo o bem mais precioso, porque irrecuperável, entre todos os bens dos quais dispomos, inquieta-nos, aos recordarmos o passado, a idéia de tempo eventualmente perdido.

Considera-se perdido o tempo em que não vivemos como homens, tempo em que não obtivemos experiências, não aprendemos, não realizamos, nem desfrutamos nem

Dietrich Bonhoeffer

sofremos nada. Tempo perdido é tempo vazio que não foi preenchido. Bem, tal não se pode dizer dos anos passados, de maneira alguma.

Perdemos muito, algo mesmo de valor incomparável, mas o tempo não foi perdido. É verdade que conhecimentos e experiências adquiridas, dos quais só se ganha consciência posteriormente, são abstrações do verdadeiro, da existência vivida mesmo.

Mas, assim como o poder esquecer equivale a uma graça, também a memória, a repetição de ensinamentos recebidos, faz parte da vida responsável.

Nas páginas que se seguem eu gostaria de tentar prestar contas de alguma coisa que se me impôs como experiência e revelação comum.

Não se trata de conhecimentos pessoais, não de algo sistematicamente ordenado, não de discussões e teorias, mas sim, de certo modo, de resultados no terreno do humano obtidos no círculo dos correligionários.

Resultados postos lado a lado, pertencentes um ao outro graças à experiência concreta, não que constituíssem novidade, mas já em tempos passados conhecidos e agora por nós reavivados e reconhecidos.

Não se pode escrever sobre estas coisas sem que uma sensação de gratidão por todos estes anos de convívio e comunhão espiritual conservados se comprovados nos invada e em cada uma das palavras nos acompanhe.

Sem Chão Debaixo dos Pés

Será possível que já houve na História homens que no presente tiveram tão pouco chão debaixo dos pés – aos quais todas as alternativas do presente existentes ao alcance do possível pareciam igualmente insuportáveis, hostis à vida, sem sentido algum – homens que procuraram a fonte de suas energias tão além das presentes alternativas, somente no passado e no futuro, homens que contudo, sem serem utopistas, podiam esperar com tanta segurança e calma o êxito de sua causa – como nós? Ou antes: Será que os responsáveis de uma geração diante de uma transformação histórica decisiva sentiam diferentemente do que nós hoje – justamente porque se estava criando algo bem novo que não se enquadrava dentro das alternativas do presente?

Quem Persevera?

A grande mascarada do maligno pôs todos os conceitos éticos em confusão estonteante. Para as pessoas que vem do nosso mundo com conceitos éticos tradicionais é realmente desconcertante que o mal possa tomar a forma da luz, da ação beneficente, da necessidade histórica, da justiça social; para o cristão que vive da Bíblia, todavia, isto é a confirmação da ilimitada malvadez do maligno.
Evidentemente é o falhar dos “sensatos”, que na melhor intenção e no ingênuo desconhecimento da realidade pensam poder endireitar o vigamento que cedeu com um pouco de juízo. Na sua fraca capacidade de visão querem fazer justiça a todos os lados e serão destarte esmagados pelo tremendo choque de forças opostas, sem que pudessem conseguir o mínimo.

Decepcionados com a insensatez do mundo eles se vêem condenados à frustração e por fim se retiram resignados ou ainda caem indefesos nas garras do mais forte. Mais comovente ainda é o fracasso do fanatismo ético. O fanático pretende enfrentar o poderio do mal com a pureza de um princípio. Assim como um touro se lança contra a capa vermelha em vez de atingir o toureiro, ele também cansa e é vencido. Ele se perde no secundário e termina apanhado pela cilada do mais sabido. Desamparado se debate o homem de consciência diante do dilema da prepotência da situação que lhe exige decisão. A extensão dos conflitos, que o obrigam a escolher sem que ache conselho nem amparo a não ser na própria consciência, o esmaga.

Os inúmeros honrados e tentadores disfarces, sob os quais o mal dele se aproxima, trazem à sua consciência medo e insegurança, até que a ele baste afinal, em vez de conservar uma consciência boa, tê-la salva, isto é, até que minta à sua própria consciência a fim de não despertar; pois, jamais pode o homem, cujo único amparo constitui a consciência, entender que uma consciência má possa ser mais salutar e mais forte do que uma consciência enganada. Desta desconcertante quantidade de possíveis decisões só o caminho seguro do dever parece poder guiar-nos a salvo. Aqui se entende o mandado como o mais seguro e a responsabilidade pela ordem cabe ao mandante e não ao que executa.

Na limitação do que é do nosso dever jamais chegamos ao risco da ação resultante da responsabilidade pessoal, a única que pode atingir o mal no centro e vence-lo. O homem do dever, afinal de contas, terá de cumprir sua obrigação até com o diabo.
Aquele, todavia, que se dispõe a se realizar no mundo em verdadeira liberdade, que prega sobre tudo a ação necessária, mesmo que pese sobre a consciência e prejudique seu nome; aquele que está pronto a sacrificar um princípio estéril ao compromisso fecundo, ou uma sabedoria estéril da mediocridade a um radicalismo que produz fruto, que tenha cuidado para que não o derrube a sua liberdade.

Ele é capaz de ceder ao ruim para impedir o pior e assim perderá a capacidade de reconhecer que exatamente o pior, que ele pretende evitar, poderia ser o melhor. Aqui está a origem de tragédias. Na fuga da discussão pública este ou aquele alcança o asilo de uma virtualidade particular. Mas então terá de fechar olhos e boca à injustiça ao seu redor. Apenas à custa de uma ilusão pode ele conservar-se puro da maculação por um agir responsável. Em tudo que ele faz, não o deixará em paz aquilo que ele deixa de fazer, aquilo que ele omite. Nesta inquietude ele se arruína, a não ser que se torne o mais hipócrita de todos os fariseus.

Quem há de perseverar? Somente aquele para quem sua própria razão, seu princípio, sua consciência, sua liberdade, sua virtude não significam a medida última, estando ele pronto a sacrificar tudo isso, quando na fé, apenas preso a Deus, se sabe chamado para a ação obediente e responsável; o responsável, cuja vida nada mais significa do que a resposta à pergunta e ao chamado de Deus. Onde estão os responsáveis?

Civilcourage?

Como se justifica afinal a queixa com respeito à falta de civilcourage? Assistimos nesses anos a muita bravura e abnegação, mas quase em lugar algum achamos civilcourage, nem em nós mesmos. Seria uma psicologia demasiadamente ingênua querermos atribuir tal carência apenas à covardia pessoal. No fundo há razões bem diferentes. Nós, alemães, tivemos de aprender em uma história muito longa a necessidade e o poder da obediência. Vimos o sentido da grandeza da nossa vida na subordinação de todos os desejos e pensamentos pessoais, sob os encargos que nos couberam.

Nossos olhares eram dirigidos para cima, não em temores de escravos, mas na livre confiança de que no encargo compreendem uma profissão e na profissão uma vocação. Afinal, preferir seguir a ordem de “cima” a obedecer ao próprio critério, é resultado da voluntariedade que nasce da desconfiança justificável para com o próprio coração. Quem há que possa negar ao alemão que na obediência, em missão, na profissão sempre realizou o extremo de bravura e risco de vida? Sua liberdade, entretanto, o alemão conservou nisso – e onde se tem falado mais apaixonadamente de liberdade no mundo do que na Alemanha desde Lutero até a filosofia do idealismo? – que tentou libertar-se da teimosia a serviço do todo.

Profissão e liberdade valeram-lhe por dois lados da mesma causa. Mas com isso desconheceu o mundo; ele não calculou que sua disposição à subordinação, ao risco da própria vida na missão assumida pudesse ser motivo de abuso para o mal. Caso tal acontecesse, até o cumprimento da profissão tornar-se-ia duvidoso e todos os princípios morais fundamentais haveriam de começar a vacilar. Descobriu-se, então, que aos alemães ainda faltava um decisivo reconhecimento de base: o da necessidade da ação livre e responsável, mesmo contra a profissão e contra a missão.

Em seu lugar surgiu de um lado a inescrupulosidade irresponsável e, do outro, o torturante escrúpulo que impedia toda a ação. Civilcourage só pode resultar do livre senso de responsabilidade do homem livre. Somente hoje os alemães começam a descobrir o que quer dizer livre responsabilidade. Ela se baseia sobre um Deus que exige o livre risco da fé numa ação responsável e que, aquele que nisso se torna pecador, garante perdão e conforto.

Do Êxito

Certamente não é verdade que o êxito justifica a ação má e os meios condenáveis, mas tampouco é possível considerarmos o êxito algo eticamente neutro. Não se pode haver dúvida quanto ao fato de que o êxito histórico produz o chão sobre o qual se continua a viver e é muito duvidoso se é eticamente mais responsável querer alguém lutar qual D. Quixote contra uma época nova ou dispor-se a servir esta nova época na confissão da própria derrota e com total voluntariedade. O êxito, afinal, faz a História, e por cima das cabeças dos homens que fazem a História o Dirigente da História transforma sempre o mal em bem. Não passa de um curto-circuito de certos fanáticos de princípios sem senso histórico algum e, por isso irresponsáveis em suas idéias, querer ignorar totalmente a importância ética do êxito.

É oportuno que uma vez sejamos obrigados a discutir seriamente o problema ético do êxito. Enquanto o êxito coincidir com o bem, podemos ter o luxo de considerar o êxito como eticamente irrelevante. No momento, entretanto, em que maus meios levarem ao êxito, surgirá o problema. Diante de tal situação reconhecemos que nem a crítica teórica do mero observador nem a simples mania de querer ter razão, isto é, a recusa de se adaptar à realidade, nem o oportunismo, isto é, a renúncia de si mesmo e a capitulação perante o êxito farão justiça à tarefa. Nós não queremos e tampouco devemos ser nem críticos que se julgam ofendidos nem oportunistas.

Teremos de nos considerar co-responsáveis na formação histórica, de caso em caso e em cada momento, tanto como vencedores quanto como derrotados. Quem por nada que acontecer, permitir que lhe seja tirada a co-responsabilidade no decurso da História, porque sabe que esta lhe é outorgada por Deus, este achará além de toda a crítica estéril assim como de todo o improdutivo oportunismo, uma relação fecunda para os eventos históricos. A fala de um declínio heróico diante da derrota inevitável não apresenta em princípio nada de heróico, porque não arrisca um olhar para o futuro.

A questão última não é como eu de modo heróico posso escapar da situação, mas como a geração vindoura deve continuar a existir. Soluções produtivas, mesmo que temporariamente humilhantes, só podem resultar desta interrogação historicamente responsável. Em poucas palavras, é muito mais fácil manter-se fiel a uma causa por princípio do que por responsabilidade correta. A geração jovem terá o mais seguro instinto para distinguir se a ação está obedecendo a um mero princípio ou a uma responsabilidade viva: pois nisso está em jogo seu próprio futuro.

Da Parvoíce

Parvoíce e um inimigo mais perigoso do bem do que a maldade. Contra o mal não se pode simplesmente protestar, ele tem de ser derrotado. Pode-se, em caso de necessidade, impedir o mal com o uso da violência e o mal sempre traz em si o gérmen da autodestruição, causando ao menos um mal-estar no homem. Contra a parvoíce somos indefesos. Nem com protestos nem com violência alcançamos algum resultado! Não há argumentos: fatos que contradizem o próprio preconceito nem sequer merecem fé – em tais casos o ignorante torna-se inclusive crítico – e caso sejam fatos inevitáveis, serão postos de lado como casos isolados. Ademais, o ignorante, muito distinto do malvado, está completamente satisfeito consigo mesmo; sim, ele se torna até perigoso, pois facilmente se sente provocado e passa à agressão. Por esta razão recomenda-se mais cautela perante o ignorante do que enfrentando o mau. Jamais tentaremos persuadir o ignorante com argumentos; é inútil e perigoso.


Para sabermos como enfrentar a parvoíce, teremos de procurar entender sua natureza. Tanto é certo, que a parvoíce não é essencialmente um defeito intelectual, mas antes um defeito humano. Há pessoas intelectualmente muito vivazes que são parvas e outras intelectualmente muito paradas, as quais porém são tudo menos tolas. Tal descoberta fazemos para nossa surpresa em vista de certas situações. Então fica-se menos com a impressão de que a parvoíce é um defeito nato, do que sob certas circunstâncias os homens são feitos ignorantes, i.é., se deixam fazer parvos e ignorantes. Observamos ainda que pessoas retraídas e de vida solitária apresentam tal defeito com menos freqüência do que aquelas que tem inclinações sociais ou são obrigadas a conviver com outros homens ou grupos de homens.

Assim sendo, a parvoíce parece constituir mais um problema social do que psicológico. Ela é uma forma peculiar de influência de circunstâncias históricas sobre o homem, um sintoma psicológico de determinadas situações externas. Por um exame mais exato demonstra-se que qualquer ostentação de poder mais forte e exterior resulta numa boa parte de pessoas na parvoíce, quer se trate de poder político quer religioso. Pois, aparentemente, temos alguma espécie de lei psicossociológica. O poder de um precisa da tolice do outro. O processo não é de maneira alguma este que determinadas inclinações – como por exemplo intelectuais – de repente enfraquecem ou desaparecem no homem, mas que sob a imponente impressão do desenvolvimento de poder ao homem se rouba sua intima independência e então ele desiste – mais ou menos inconscientemente – de reagir às situações criadas por seu próprio comportamento.

Não nos deixemos iludir com o fato de que o tolo muitas vezes se mostra teimoso, como se fosse independente. Nota-se particularmente na conversa com ele, que não é com ele pessoalmente que se fala, mas com slogans e senhas que vieram a domina-lo. Ele se acha sob um fascínio, ele está obcecado, abusado em seu próprio ser, realmente maltratado. Tendo-se tornado instrumento involuntário, o tolo é capaz de toda a maldade e ao mesmo tempo é incapaz de reconhece-la como mal. Nisso está todo o perigo do abuso diabólico. Desta forma homens podem ser destruídos para sempre.

É aqui que se torna bem claro que para vencer a tolice não basta um ato de instrução, mas é preciso um ato de libertação. Teremos de compreender, então, que para realizar uma libertação interior, na maioria dos casos, será indispensável ter havido primeiramente uma libertação exterior: antes disso teremos de desistir de todas as tentativas de persuadir o tolo. Em tal situação verifica-se que em vão nos esforçamos sob essas condições a indagar o que “o povo” pensa, e porque esta pergunta para a pessoa que pensa e age com responsabilidade é totalmente dispensável – sempre apenas sob as circunstâncias dadas. A palavra da Bíblia de que o temor de Deus é o princípio da sabedoria (Salmo 111:10), afirma que a libertação interior do homem para uma vida responsável diante de Deus é o único meio para superar a tolice.

Ademais há um consolo nessas reflexões sobre a parvoíce, porque de maneira alguma permitem que julguemos a maioria dos homens como tolos sob todas as circunstâncias. Será realmente importante se os poderosos esperam mais da tolice ou da interior independência e inteligência dos homens.

DESPREZO DOS HOMENS

Muito grande é o perigo de nós nos deixarmos impelir ao desprezo dos homens. Certamente sabemos que não temos direito a isso, e que tal atitude há de criar relações muito estéreis com nosso semelhante. Os pensamentos que nos podem prevenir contra esta tentação seriam os seguintes: com o desprezo dos homens entregamo-nos exatamente ao erro capital de nossos adversários. Aquele que despreza outro jamais poderá torna-lo útil e diferente. Aliás, nada daquilo que no outro desprezamos, nos é totalmente estranho.

Quantas vezes acontece que do outro esperamos muito mais do que nós mesmos estamos dispostos a executar. Por que será que até aqui temos pensado com tão pouca objetividade sobre a sua sujeição à tentação e à fraqueza? Temos de aprender a olhar os homens, menos de acordo com o que fazem e deixam de fazer, do que em atenção ao que sofrem. A única relação fecunda com os homens – e particularmente com os fracos – é a do amor, isto é, a vontade de viver com eles e comunidade. Deus mesmo não desprezou o homem, ao contrário, por causa do homem, Deus se tornou homem.

JUSTIÇA IMANENTE

Conta entre as experiências mais estupendas e ao mesmo tempo irrefutáveis que o mal comprova sua tolice e inutilidade, e isto freqüentemente, em prazo surpreendentemente curto. Com isto não se afirma que a toda ação má se segue de imediato o castigo, mas certo é que em princípio a transgressão dos Mandamentos de Deus no suposto interesse da sobrevivência terrena, resulta exatamente em conseqüências que prejudicam este interesse. Esta nossa experiência pode ser interpretada de maneira diversa. Em todo caso parece ser certo que o convívio dos homens resultam leis que são mais fortes do que tudo que pretende sobrepujar-se a elas.

Por esta razão não seria apenas injusto, mas também imprudente, desprezar estas leis. Daí se nos torna compreensível porque a ética aristotélico-tomista elevou a prudência à categoria de virtude cardeal. Não procede o que um certo modo de pensar neoprotestante na ética quis insinuar: que prudência e tolice, do ponto de vista ético, sejam indiferentes. O prudente reconhece na plenitude do concreto e das possibilidades nele contidas ao mesmo tempo os limites intransponíveis, resultantes para toda a ação das leis permanentes ao convívio humano. É neste reconhecimento que o prudente faz o bem, o homem bom age prudentemente.

Acontece que não há uma ação de importância histórica que não transgrida os limites desta lei. Decisiva é porém a diferença entre duas atitudes. Uma que encara tal transgressão das leis estabelecidas, de princípio, como uma anulação, como se fosse um direito de tipo peculiar, a outra que bem conserva a consciência desta transgressão como culpa inevitável e justifica-se apenas com o propósito do imediato restabelecimento e respeito da lei e dos limites. Não seria necessariamente hipocrisia se fosse apresentado como objetivo da ação política o restabelecimento do direito, e não simplesmente a sua sobrevivência.

No mundo o arranjo é que o respeito fundamental das leis últimas e dos direitos da vida ao mesmo tempo é mais útil à sobrevivência e que estas leis só admitem uma transgressão curta, única e em caso isolado, enquanto elas eliminam mais cedo ou mais tarde e com violência irresistível aquele que pretende transformar a necessidade em princípio e destarte estabelecer uma lei própria. A justiça imanente da história somente recompensa e pune a ação, enquanto a justiça eterna de Deus prova e julga os corações.

ALGUMAS PROPOSIÇÕES A RESPEITO DA ATUAÇÃO DE DEUS NA HISTÓRIA

Creio que Deus de tudo, mesmo do mal em sua expressão máxima, pode e quer fazer surgir o que é bom. Creio que Deus em toda a situação de necessidade nos quer dar santa resistência, quanta nos é precisa. Mas Ele não no-la fornece antecipadamente, a fim de evitar que confiemos em nós mesmos, devemos confiar unicamente nele. Em tamanha fé deveria ser superado todo o medo diante do futuro. Creio que nem mesmo nossas faltas e erros são em vão e que para Deus não será mais difícil arranjar-se com eles do que arranjar-se com nossas supostas obras boas. Creio que Deus não é um mero fato independente de todos os tempos, mas que ele espera por oração sinceras e ações responsáveis e as responde.

CONFIANÇA

Dificilmente é poupada a alguma pessoa a experiência da traição. A figura do Judas, que antigamente nos poderia parecer incompreensível, não mais nos é estranha. O ar de tal maneira se acha envenenado pela desconfiança que quase perecemos sob sua pressão. Onde, entretanto, conseguimos romper a camada da desconfiança, pudemos colher a experiência de uma nunca antes imaginada confiança. Aprendemos lá onde confiamos, a entregar nossa cabeça nas mãos do outro; contra todas as múltiplas interpretações, as quais nossa vida e nossa ação teve de se sujeitar, aprendemos a confiar ilimitadamente.

Sabemos agora que unicamente com tal confiança, que sem dúvida alguma não deixa de ser um risco, mas um risco alegremente aceito, se vive e trabalha verdadeiramente. Sabemos que semear ou estimular desconfiança é das atitudes mais responsáveis e que, ao contrário, deveríamos, quanto possível, fortalecer e promover confiança entre os homens. A confiança continuará a ser uma das maiores e mais raras dádivas a trazer felicidade ao convívio humano, e certamente só poderá surgir sobre o fundo escuro de uma suspeita necessária. Aprendemos a não nos entregarmos, por nada, ao ordinário, mas a os submetermos incondicionalmente àquele que merece fé.

SENSO DE QUALIDADE

Caso não recuperemos a coragem de restabelecer o senso pelas humanas distâncias e lutar por elas, pereceremos na anarquia dos valores humanos. A insolência que se evidencia no menosprezo de todas as distâncias humanas, ao mesmo tempo constitui característica da plebe, assim como a insegurança íntima, o regatear e cortejar o favor do insolente, o rebaixar-se aos modos da plebe é caminho à decadência própria. No momento em que já não se sabe mais o que se deve aos outros, quando se apaga o senso de qualidade e a capacidade de manter distância, o caos estará à porta. Lá onde toleramos por mero comodismo material que a insolência se aproxime, já nos teremos rendido a nós mesmos, e a correnteza da enchente terá rompido o dique onde seria o nosso lugar, de modo que teremos culpa pelo todo ameaçado.

Em outros tempos talvez tenha sido a missão da cristandade dar testemunho da igualdade dos homens; hoje, todavia, exatamente o cristianismo terá de defender o respeito às distâncias humanas e a qualidade do homem, e isto apaixonadamente. A interpretação errônea, como se o cristianismo desta forma tratasse de causa própria, a suspeita de opinião associal, teremos que agüentar. Tais são as censuras permanentes da plebe contra toda a ordem. Quem nesta hora ficar brando e inseguro não entende o que está em jogo, e provavelmente as censuras o atingem com justiça.

Achamo-nos em meio do processo de degeneração em todas as classes sociais e ao mesmo tempo parece surgir a hora de nascer um novo comportamento nobre que tende a unir um círculo de homens de todas as camadas sociais tradicionais. Nobreza subsiste e resulta de sacrifício, coragem e de um conhecimento claro daquilo que se deve a si mesmo e ao outro, por uma exigência natural de respeito, como convém, bem como por uma manutenção do respeito para cima tanto quanto para baixo. A questão é, em toda linha, coseguir-se a recuperação das experiências de qualidade, tão abaladas; sim, importa restaurar a ordem sobre a base da qualidade. Qualidade é o arquiinimigo de todo o tipo de degeneração das classes sociais.

Socialmente isto significa a renúncia à caça de posições, o rompimento com o culto de estrelas de cinema e teatro, esporte e jornalismo, o olhar livre para o alto e para baixo, especialmente no que diz respeito à escolha das amizades mais chegadas, à alegria, à vida íntima e à coragem para a vida pública. Culturalmente equivale à experiência de qualidade ao retorno de jornal e rádio para o livro, da vida em constante precipitação ao ócio e à quietude, da distração à concentração, da sensação à reflexão, do ideal de virtuose à arte do esnobismo à modéstia, da intemperança à sobriedade. Quantidades disputam espaço uma com a outra, qualidades, entretanto, se completam.

COMPARECER

Deve contar-se com que a maioria dos homens somente fiquem mais prudentes com as experiências que sentem na própria carne. Assim se explica primeiramente a surpreendente incapacidade da maioria para uma ação preventiva de qualquer tipo – pois, geralmente acredita-se na possibilidade de poder escapar ao perigo até que seja tarde demais; em segundo lugar, assusta a insensibilidade diante do padecimento alheio. Só em proporção com o crescente medo da proximidade ameaçadora da desgraça cria-se a compaixão. Há muito a eleger para a justificação desta atitude, do ponto de vista ético: não se querer por a mão em assuntos que cabe ao destino resolver; autêntica vocação e força para a ação apenas pode resultar da situação séria que surge na vida de cada um; afinal, não somos responsáveis por toda a injustiça e todo o sofrimento no mundo e menos ainda somos juízes do mundo.

Do ponto de vista psicológico: a total carência de fantasia, de sensibilidade, do estado interior de constante alerta é compensada por uma sólida indiferença, resistência imperturbável de trabalho e grande capacidade para o sofrimento. Se olharmos tudo isso com o olhar cristão, entretanto, não nos podemos iludir a respeito da fragilidade de todas essas justificativas, pois nos parece que o que realmente falta é a amplitude do coração bem formado. Cristo manteve-se distante do sofrimento até que chegasse sua hora. Então, Ele o enfrentou com liberdade, atacou-o e venceu-o sem hesitação. Conforme diz a Escritura, Cristo suportou todos os sofrimentos de todos os homens na sua carne como sofrimento próprio – eis um idéia incrivelmente sublime – e Cristo suportou-os na liberdade plena. Não podemos certamente comparar-nos com Cristo, nem somos vocacionados para salvar o mundo por nossa própria ação ou sofrimento.

Não devemos querer nos sobrecarregar com o impossível e com ele nos torturar, já que não o poderemos suportar, pois, não somos senhores, mas apenas instrumentos ou ferramentas na mão do Senhor da História. De fato, só conseguimos sofrer os padecimentos de nosso semelhante em medidas bem limitadas. Não somos Cristo, mas se quisermos ser cristãos, tal importaria que participássemos da amplitude do coração de Cristo em ação responsável, que em liberdade apanha a hora exata e enfrenta o perigo e se dispõe a um comparecer autêntico, que não é ditado pelo medo, mas brota do amor libertador e redentor de Cristo para com todos os que sofrem.

Mera expectativa passiva e assistência indiferente não são atitudes cristãs. O cristão não pode esperar até que seja alertado pelas experiências na própria carne, mas desperta com as experiências do sofrimento dos irmãos, pelos quais Cristo padeceu, e isto o impele à ação e à compaixão.

DO PADECER

É muitíssimo mais fácil sofrer na obediência a alguma ordem humana do que sofrer na liberdade de uma ação responsável. É muitíssimo mais fácil sofrer em comunidade do que na solidão. É muitíssimo mais fácil sofrer em público e sob honras do que às escondidas e em desonra. É muitíssimo mais fácil sofrer pelo sacrifício da vida material do que pelo espírito. Cristo sofreu na solidão, isolado e em vergonha na carne como no espírito, e desde então muitos cristãos sofrem com Ele o mesmo.

PRESENTE E FUTURO

Até aqui nos parecia constituir um dos direitos inalienáveis da vida humana poder traçar os planos para a existência, tanto na vida profissional como pessoal. Isto acabou. Sob o imperativo das circunstâncias chegamos a uma situação em que devemos desistir de “nos inquietar pelo dia de amanhã” (S. Mateus 6:34), havendo uma grande diferença se isto acontece em virtude da livre resposta da fé, como a caracteriza o Sermão da Montanha, ou sob pressão do respectivo momento.

Para a maioria dos homens significa a renúncia forçada de todo o planejamento, a submissão resignada, irresponsável e leviana ao momento, enquanto uns poucos ainda continuam sonhando com um futuro mais bonito, tentando assim superar a tristeza do presente. Ambas as reações para nós são impossíveis. Só nos resta o caminho estreito que às vezes mal se descobre, e teremos de toma-lo diariamente como se fosse o último. Mesmo assim devemos viver na fé e responsabilidade de tal modo como se nos esperasse ainda um glorioso futuro.

“Ainda se comprarão casas, campos e vinhas nesta terra” (Jeremias 32:15), assim deve o profeta Jeremias proclamar, em vivo contraste com seus presságios ameaçadores, na véspera da destruição da Cidade Santa, o que constituíra diante da situação desesperadora um sinal divino e garantia de um grande porvir. Pensar e agir com vistas à nova geração, e nesta atitude estar pronto para prosseguir sem medo nem preocupação, todos os dias, eis o comportamento que se nos impõe. Certamente não será fácil suportar tudo isso com coragem, mas é necessário.

OTIMISMO

É mais prudente mostrar-se pessimista: assim as desilusões são esquecidas e não temos de nos envergonhar diante dos homens. Por esta razão o otimismo é visto com desaprovação pelos prudentes. Otimismo, entretanto, não é essencialmente uma opinião sobre a presente situação, mas representa uma força vital, uma energia da esperança, onde outros resignam, uma resistência de manter erguida a cabeça, quando tudo parece querer fracassar, uma força que jamais entrega o futuro ao adversário, mas o reclama para si. Sem dúvida alguma existe um otimismo covarde, estúpido, tolo que não pode colher aprovação de ninguém.

O otimismo entretanto, que equivale a uma vontade para o futuro, ninguém deverá menosprezar, mesmo que erre centenas de vezes. Eis que é a saúde da vida, que o doente não deve contaminar. Homens há que julgam ser condenável, cristãos inclusive existem que consideram ser ímpio esperarmos um futuro terreno melhor e prepararmo-nos para tanto. Acreditam eles no caos, na desordem, na catástrofe como no sentido dos acontecimentos presentes e assim se recolhem para a resignação e pia fuga ao mundo, escapando destarte à responsabilidade para com a continuação da vida, a reconstrução e as gerações a vir. Pode ser que o Dia do Juízo seja amanhã, pois bem, então será de bom grado que desistimos do trabalho em favor de um futuro melhor, mas antes não.

PERIGO E MORTE

Pensar na morte tornou-se nos últimos anos bem mais familiar. Ficamos mesmo admirados com o sangue frio com o qual recebemos notícias da morte de companheiros de infância. Nem mais conseguimos odiar a morte, pois nela já descobrimos alguns traços de bondade e quase nos reconciliamos com ela. Dentro de nós sentimos que já lhe pertencemos e que cada novo dia não passa de um milagre. Não seria direito dizermos que gostamos de morrer – mesmo que a ninguém seja desconhecido aquele cansaço, contra o qual devemos nos defender com todas as forças – para tanto somos curiosos demais ou se o dissermos com mais seriedade: gostaríamos ainda de saber alguma coisa no sentido de nossa vida tão confusa.

Nem tampouco desejamos dar à morte um ar de heroísmo, pois a vida nos é preciosa demais e cara mesmo. Tanto mais nos recusamos a ver o sentido da vida no perigo, pois ainda não nos achamos suficientemente desesperados e conhecemos muito bem as coisas boas da vida. Ao mesmo tempo sabemos do medo pela vida e os efeitos destruidores de uma constante ameaça à vida. Nós ainda amamos a vida, mas creio que a morte não mais nos possa surpreender. Nem mais temos coragem de admitir o íntimo desejo de que a morte não nos apanhe por acaso, repentinamente, longe do essencial, mas na plenitude da vida e na inteireza de nosso sacrifício, porque as experiências da guerra nos desanimam. Não as circunstâncias externas, mas nós mesmos transformaremos a morte naquilo que ela deve ser, morte por voluntária aquiescência.

SOMOS AINDA APROVEITÁVEIS?

Temos sido testemunhas mudas de atos criminosos, fomos lavados com muitas águas, aprendemos as artes do disfarce e da oração ambígua, por experiência ficamos desconfiados contra os homens e muitas vezes lhes ficamos devendo a verdade e a palavra franca, cansamos sob os conflitos insuportáveis e quiçá nos tornamos cínicos até – somos ainda aproveitáveis? Verdade é que não necessitaremos de gênios, nem de cínicos, nem de desprezadores dos homens, nem de sabidos táticos, mas sim de simples, modestos e retos homens. Será que nossa íntima resistência contra tudo que nos foi imposto se mostrará forte e nossa sinceridade contra nós mesmos impiedosa o bastante para que achemos novamente o caminho para a simplicidade e retidão?

Dietrich Bonhoeffer

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Dietrich Bonhoeffer (Breslau, 4 de fevereiro de 1906 — Berlim, 9 de abril de 1945) foi um teólogo, pastor luterano, membro da resistência alemã anti-nazista e membro fundador da Igreja Confessante, ala da igreja evangélica contrária à política nazista. Bonhoeffer envolveu-se na trama da Abwehr para assassinar Hitler. Em março de 1943 foi preso e acabou sendo enforcado, pouco tempo antes do próprio Hitler cometer suicídio. Filho de um psiquiatra de classe média alta. Quando jovem decidiu-se seguir a carreira pastoral na Igreja Luterana, doutorou-se em teologia na Universidade de Berlim e fez um ano de estudos no Union Theological Seminary em Nova York. Retornou a Alemanha em 1931.

Dez Anos… – Dietrich Bonhoeffer
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